Ano 11 Nº 065/2023 – e(NIGG)m(A)
Por Mario Sérgio Moreira Garcia
Durante minha vida, enfrentei racismo e preconceito diversas vezes. Desde quando era criança até agora na idade adulta. Não parece que as coisas mudaram muito, ou talvez mudaram. Às vezes, sinto que as coisas estão indo de mal a pior. Quando eu era criança, as mães de alguns colegas não gostavam da ideia de um “negrinho” estudar com os seus filhos, mas eu não sabia por quê. Agora, as pessoas me seguem nos mercados ou escondem seus celulares quando passo perto delas e, infelizmente, hoje eu sei o porquê…
A história que estou prestes a contar aconteceu em 2018, se bem me lembro, era verão, havia muita gente passeando, sentada nas praças, relaxando, pegando ônibus para ir para casa e toda aquela coisa “rotineira”. Naquela época eu fazia cursinho preparatório em uma escola estadual de ensino médio que se localizava muito longe da minha casa, na área mais central da cidade, para ser exato. Eu tinha 23 anos e ainda não tinha conseguido um emprego, minhas únicas opções eram trabalhos braçais, como servente de pedreiro, capinando pátio ou ajudando em mudanças. Então, como vocês podem ver, fazer esse curso era uma grande chance de mudar a minha vida e, claro, a vida da minha família. Não vou mentir, o dinheiro que ganhava fazendo esses trabalhos, era bom, mas me sentia muito desconfortável trabalhando o dia todo com o sol quente queimando minha cabeça e tendo que aguentar pessoas me xingando ou gritando comigo. Além disso, devido a uma situação muito delicada que me ocorreu, tive que largar os “bicos” para procurar um “emprego sério”. Então, seguindo a sugestão de um dos meus melhores amigos, ingressei no cursinho gratuito oferecido pela prefeitura.
Todos os dias, eu tinha que ir de casa para a escola, e vice-versa, a pé, era algo como 45 minutos de caminhada ida e volta. Todos os dias eu tinha que descer a avenida Sete de Setembro e atravessar a Praça do Coreto, porque, esse era o caminho que eu fazia para voltar para casa. Porém, neste dia, algo “estranho” aconteceu, enquanto eu atravessava a rua, uma mulher, uma senhora para ser mais específico, cujas roupas seguiam aquele estereótipo religioso, como roupas monótonas e tons pastéis, saias longas, cabelos presos em coque, óculos e com um
pingente de cruz no pescoço, começou a cantar: “o sangue de jesus tem poder” e a cada passo que eu dava, ela cantava mais alto…
Vamos analisar os fatos: eu estava apenas atravessando a rua, com meu celular em uma mão e o caderno na outra, sequer olhei para ela, mas como todo negro é suspeito, ela entrou em pânico, mesmo eu só fazendo o caminho que tinha feito todos os dias do curso… Apenas fingi que não estava vendo aquilo e continuei andando, mas senti dor, medo, me senti muito confuso com o que estava acontecendo porque, havia muitas pessoas andando por aí, e ela apenas estava com medo de mim, eu sentia dor por ser tratado como um monstro ou algo assim enquanto estava apenas voltando para casa depois de um dia cansativo de estudo. Não que esse tipo de visão preconceituosa fosse algo novo para mim, porque em todos os lugares que eu ia, as pessoas falavam do meu cabelo, barba, formato do corpo, traços faciais como se ser negro fosse errado, mas nunca me importei muito, sempre erguia minha cabeça e andava com orgulho de ser quem eu era, um grande negro, porém… Desta vez, me senti minúsculo, já não exalava aquela aura orgulhosa, me sentia como um rato preso numa ratoeira, ou menos ainda, como uma barata encurralada quando acendemos as luzes da cozinha.
Depois que isso aconteceu, algumas pessoas me disseram: “Por que você fugiu? Você tem que construir o seu espaço.” ou “Por que você não falou com ela? Você tem que se impor”, bem… Sabe o que teria acontecido se eu tivesse feito isso? Eu teria sido espancado até a morte pelos taxistas que pulariam para ver porque tinha uma mulher gritando tão alto… E eu seria apenas mais um número nas estatísticas, mais um “engano”. Sendo uma pessoa negra, eu não poderia simplesmente sentar ao lado dela ou até mesmo questionar sobre o que era aquele escândalo todo, porque a sociedade em geral acha que os negros são rudes, violentos, acham que vamos atacar sem pensar duas vezes, eles pensam que somos selvagens, pensam que estamos sempre em busca de uma vida fácil. Um homem negro deve estar sempre sorrindo ou falando o mais suavemente possível, porque, senão, as pessoas tendem a pensar que ele está xingando ou sendo rude. Uma mulher negra não pode reclamar ou expressar sua insatisfação com algo, caso contrário, ela é tida como louca ou histérica. Os negros não podem comprar carros, construir suas casas, comprar eletrodomésticos, senão, as pessoas começaram a se perguntar de onde está vindo todo aquele dinheiro, e a primeira aposta delas é tráfico de drogas. Negros não podem andar no mercado, senão 99% dos funcionários ficam nos seguindo, fingindo que estão limpando o chão ou arrumando as prateleiras, só para garantir que não vamos roubar nada. E mesmo com esses 99% nos cercando, quase ninguém vem nos atender, porque acham que não temos dinheiro para comprar, e quando compramos algo, as pessoas ficam olhando para nós como se estivéssemos tentando pagar com dinheiro falso ou aplicar algum golpe e, na grande maioria dos casos, eles nem se dão ao trabalho de verificar o nosso dinheiro antes de chamar o gerente, apenas assumem que nossa nota de R$ 100 é falsa e começam a xingar. Os negros sempre são culpados ou estão errados em uma discussão porque os brancos sempre são os detentores da verdade e razão, quer conheçam a situação a fundo ou não. Nós negros, não podemos expressar nossa fé, senão as pessoas começam a nos olhar torto, como se estivéssemos indo na “direção errada”, porque todo tipo de religião de matriz africana é do diabo e só serve para nos enganar e tirar nosso dinheiro. As pessoas começam a se afastar de nós com medo de que possamos jogar algum tipo de feitiço ou fazer algo com elas.
A verdade é que todo esse preconceito me machuca muito. Não posso deixar meu cabelo ou barba crescer, porque isso vai me fazer parecer um marginal. Não posso comprar coisas que quero, porque meus vizinhos provavelmente vão chamar a polícia por suspeita de tráfico de drogas; ou gastar algum dinheiro em lojas porque acham que eu não vou ter como pagar ou vou roubar alguma coisa. Não posso correr na rua porque isso vai me fazer parecer suspeito, como se eu tivesse acabado de cometer um assalto ou qualquer outro tipo de crime, mas também não posso andar muito devagar ou calmamente porque vai parecer que estou à espreita, esperando uma chance de fazer minhas “coisas de nego”. Estou profundamente machucado porque não posso ser eu mesmo… Não posso nem voltar para casa depois de um dia cansativo de estudo.
Mario Garcia – Discente do curso de Letras: Língua Adicionais.