Ano 04 nº 034/2016 – Sobre princesas negras, representatividade, e por que ela importa
Ana Isabel de Sousa Amorim
Letras – Linguas Adicionais: Inglês, Espanhol e suas respectivas literaturas – UNIPAMPA
É curioso como ter uma criança em casa te traz diversos questionamentos. Principalmente quando esta criança, por características físicas, se encaixa em um grupo social diferente do seu. Sofia, minha irmã mais nova, é negra, tem cabelos cacheados, nariz achatado e uma curiosidade imensa. Não demorou a questionar o mundo ao entrar na creche, e não parou ao entrar na pré-escola. Mas um questionamento que a aflige é o do: por que há tão poucos personagens parecidos com ela?
Logo tratei de apresenta-la a Tiana e a Tip, mas isso não a satisfez completamente e não a culpo. Quando se tem quatro anos, tudo o que queremos é nos vermos no mundo, não imagino como ela se sente, pois eu, garota branca, sempre me vi representada seja na Branca de Neve ou na Kim Possible. Isso me fez pesquisar sobre o movimento negro e me trouxe um novo termo: representatividade.
Representatividade é a qualidade daquilo que é representado. Logo isso é ligado a representação social, sempre há representação seja na TV, no cinema, no teatro ou na literatura, mas nem sempre há representatividade. Mas como pode não haver representatividade se há representação? É bem simples, representação é quando, por exemplo, um negro interpreta um escravo, mas isso não é representatividade, ninguém gosta de ser representado como escravo!
Entendo que a escravidão tenha tido impacto em povos africanos e indígenas e que colocar brancos para interpretar escravos não faria sentido historicamente, mas qual o sentido de sempre colocar negros nos papeis de empregados?
Fazendo uma pesquisa rápida, entrei em um famoso site de cinema onde haviam duas listas: dez melhores filmes infantis dos últimos anos e dez melhores filmes dos últimos anos. Na primeira, não encontrei sequer um personagem negro. Na segunda, os poucos representados eram empregados, criminosos ou escravos.
Isso é assustador! Não parando por aí, fui observar duas grandes franquias que fizeram parte da minha infância e que eu adorava assistir com a Sofia. Ambas, Harry Potter e As crônicas de Nárnia, não contavam com personagens negros em papel de destaque. Mas qual é o problema disso?
Simples, nos procuramos em tudo o que vemos, principalmente quando somos pequenos, se não nos vemos ou nos vemos representados em papéis secundários ou que nos submetam a alguém, tendemos a manter aquilo conosco.
Há alguns dias, li uma frase de uma grande e premiada atriz americana sobre a questão da representatividade: “Bem, quando eu tinha nove anos, Jornada nas Estrelas estava passando, e eu vi e saí gritando pela casa, ‘Vem cá, mãe, todo mundo, vem rápido, tem uma mulher negra na televisão e ela não é a empregada!’ Eu soube naquele momento que eu podia ser qualquer coisa que eu quisesse.” A mulher negra citada é Nichelle Nichols, a única negra em papel de destaque em “Jornada nas estrelas”, a mulher que pronunciou essa frase é ninguém mais que Whoopi Goldeberg, a atriz principal de “Mudança de Hábito”, “A cor púrpura”, “Eddie – Ninguém segura esta mulher”, “Corina – Uma babá perfeita”, entre muitos outros. Atriz esta que o único Oscar ganhado veio como forma de “melhor atriz coadjuvante” em um filme onde ela é atriz principal.
Acredito eu que esse posicionamento de Whoopi deixa claro o quanto representatividade importa, o quanto olhar para alguém e encontrar suas características nela faz com que você se sinta motivado. Para uma criança, representatividade tem um impacto essencial, principalmente por estar em uma fase onde sua visão de mundo está sendo formada, o que ela ver será o que ela desejará ser.
Quando pensamos sobre representatividade negra feminina, a primeira personagem que nos vem a cabeça é Tiana, a primeira princesa negra da Disney, porém, após uma fala problematizadora de uma criança de 4 anos, percebi o quanto ela não era realmente tudo o que eu gostava de pensar que era. Branca de Neve, Rapunzel, Elsa, Merida, todas elas são princesas, nascidas na família real de seus reinos, Tiana não. Tiana não é uma princesa, ela é uma mulher que se casou com um príncipe. E, apesar da sua linda história de empoderamento, seus roteiristas não a consideraram digna de ser uma princesa com sangue real. O príncipe de Tiana, apesar de tentarem passá-lo por negro, é latino. Entendem qual é o problema disso?
Uma menina não quer uma princesa que precisou casar com um príncipe, ou uma princesa que parece com suas colegas de escola ao invés de si. Ela deseja uma princesa com todo sangue real a qual tem direito e que pareça com ela, desde o tom de pele até os traços do rosto.
Mas este problema não afeta somente meninas e isso é evidenciado. Apenas na última década, super heróis negros passaram a ter papel de destaque, recentemente vimos o racismo gerado pelo fato de um dos personagens principais do mais novo filme da franquia “Star Wars” ser um homem negro. Mas John Boyega não só provou merecer seu papel como mostrou o quanto a representatividade importa quando um vídeo de uma criança brasileira se tornou sucesso na internet após a criança ter um ataque de alegria ao ver o boneco do “Finn”, personagem de John, em uma loja.
Isso pode parecer bobo, mas quando você para e procura heroínas e heróis negros, ou até mesmo casais românticos negros e não os encontra, você vê que o teatro, cinema, TV e literatura vem nos dizendo há séculos algo inaceitável.
Vem nos dizendo que negros não servem como nossos médicos, advogados ou nossos líderes. Que não servem como personagens românticos ou nossos salvadores. E isso é cruel! Se nós, brancos, podemos ser representados de todas as formas, por que os negros não?
Lógico que os tempos vem mudando, a Marvel e a DC, maiores produtoras de super heróis, vem trazendo cada vez mais personagens negros para as suas histórias. “Moon girl” está ai para provar isso. “Milly e Molly” e “Charlie e Lola”, clássicos da minha infância, tem personagens negras como principais. E a Disney tem investido na “Doutora Brinquedos”, uma menina que aspira ser médica assim como sua mãe. Porém essa mudança só ocorreu graças ao movimento negro e a debates sobre representatividade. Quando você para pra refletir sobre isso e, consequentemente, passa a selecionar o que passará a assistir, você mostra a industria artístisca que não aceitará mais representações racistas, que não permanecerá assistindo propagação de esteriótipos.
Apesar da crescente aparição de negros em papéis importantes, como a fantástica Viola Davis em “How to get away with murder”, Kerry Washington em ”Scandal” e John Boyega em “Star Wars”, isso não é o suficiente. Meia duzia de negros em papéis principais não são o suficiente para representar uma população que salta aos olhos nas ruas.
Mas, apesar disto, a mudança está ocorrendo. No Brasil, o “Projeto Identidade” questiona a representatividade negra na cultura pop por meios de fotografia e no ano passado surgiu o curta “Fábula de Vó Ita”, que trata sobre como a falta de representatividade negra afeta as crianças e aumenta a propensão ao racismo.
Lendo sobre tais projetos e muitos outros personagens que surgirão, vejo quanto tempo me calei diante da propagação do racismo. Quantas vezes vi séries, novelas, filmes ou peças de teatro onde a maioria são brancos e os poucos negros se encontravam em papéis de submissão e inferioridade? Quantas vezes não encontrei a sociedade em que vivo no que assistia, apesar de me encontrar na personagem representada? É incontável o número de vezes em que a falta de representatividade negra não me afetou, mas, provavelmente, afetou o meu próximo de modo irreversível.
Deixo como reflexão um trecho do diretor-escritor do filme “Dear White People” que mudou minha percepção sobre está questão: “Eu comecei a escrever esse filme há uns 10 anos como um impulso porque eu não via realmente minha história na cultura. Eu não via eu mesmo refletido nos filmes que eu amava (…) Eu tentei me colocar na cultura. Isso pode ser difícil quando não tem realmente nada aqui dizendo que você pertence a ela (…) Se você não se vê na cultura, por favor, se coloque lá, porque nós precisamos de você. Nós precisamos ver o mundo pelos seus olhos”.
Perdão àqueles que não são afetados pela falta de representatividade e o racismo que rege a nossa arte mas quando você se cala diante disto, você permite que o racismo continue sendo propagado. Mesmo que não te afete diretamente, afeta nosso próximo e não espere o próximo ser alguém que você ama para pensar sobre o assunto.
Finalizo com algo que grito durante todo o texto, representatividade importa sim! Ver-se na cultura e saber que o seu lugar não é de coadjuvante importa sim! Pense sobre isso agora e faça algo para mudar, a cultura é um reflexo e uma produção da sua sociedade. Façamos uma cultura mais inclusiva e menos excludente.