Histórias de trabalho em Bagé: figurações, memórias e afetos*

Ficção e realidade andam lado a lado. E por mais que cause certo estranhamento, será que não estamos ficcionalizando quando narramos nossa própria vida? Como é captar histórias de vida e passá-las para o papel?

Ao folhear as páginas da revista Histórias de Trabalho em Bagé as cores são convidativas aos olhos. O colorido é contrastado ao preto e cinza. Relação esta que pode ser feita quanto às histórias de esperança, de luta, de dor e de persistência. São histórias reveladas não somente pela fala, mas por gestos, marcas, expressões, sorrisos e lágrimas e por olhos que comunicam na ausência da voz. Estudantes do Instituto Federal Sul-rio-grandense, coordenados pelo professor de Sociologia Lisandro Moura, narram dezoito histórias sobre o trabalho de pessoas que acreditam no dever de fazer o bem ao próximo ou de lutar até o fim pelo próprio sustento. Eles mostram que trabalho é alegria e prazer mas pode ser tristeza e dor. Falam da consciência dos passos dados por cada um e os motivos que os levaram até onde estão. Os personagens são tão reais e a narrativa é tão humana que é possível sentir o ambiente e visualizar os encontros como se estivéssemos dentro de uma cena – ou de um sonho. Senti o gosto do mate que o escritor ofereceu ao aluno durante a entrevista enquanto avistavam a praça do Coreto, pude acompanhar os passos e as angústias das prostitutas que ganharam vida nos textos Cotidiano – um beco e Alessandra e sua descrença no trabalho, senti a ansiedade e depois as vitórias de Marilei no caminho da enfermagem, imaginei Leda me atendendo e contando sobre meu futuro, dancei com a valsa de seu Jair, assisti a um parto feito com dedicação de quem tem amor nas mãos, acompanhei a trajetória de um jovem de pouco mais de vinte anos que rodou o mundo e ainda escreveu um livro, escutei a voz do homem que salvou pessoas de incêndios mas já viu gente perder a vida, avistei o professor de boina que tem como paixão a flauta, acompanhei o cuidado e os conselhos de dona Nely, conheci a história de luta de seu Paixão, um peão viúvo, já o texto de Matheus me revelou os agentes duplos: João e Rita, acompanhei a dedicação e cansaço do pedreiro Antônio que cumpre uma carga horária de cerca de 12 horas, me assustei com as visões do senhor Sabugo, que tem como ofício administrar um cemitério e, por fim, a fé me tocou por meio de Doninha, a benzedeira doce com quase um século de vida. Ela prova por que ainda é possível acreditar na generosidade humana.

Depois de adentrar as histórias dos personagens reais, os estudantes se embebedaram do ouvir o outro, calaram e transformaram as narrativas em belas poesias do cotidiano. Ver e enxergar continuam tendo significados diferentes porque os olhos não percebem diariamente os detalhes. Nos textos o oposto acontece: sentimos, tateamos, ouvimos, enxergamos e vivemos dentro de um universo paralelo que está bem próximo. Descobrir o outro é redescobrir a nós mesmos pois nos identificamos com as histórias depois de dificuldades vividas ou comemoramos junto com a vitória de quem superou algo.

Pessoas que demonstram garra, dedicação, delicadeza, força e amor estão retratadas nas páginas da revista que traz na capa uma vendedora de algodão doce sorrindo. O sorriso revela que, apesar de tudo, é preciso continuar, por um caminho ou outro. O trabalho desenvolvido pelos jovens estudantes mostram o quanto o ofício diário das pessoas é uma busca eterna por descobrirem quem elas realmente são e a que vieram ao mundo.

A troca sempre haverá: o dinheiro em troca do serviço, o serviço em troca do dinheiro, as contas do fim do mês, as roupas e comidas que necessitam ser compradas. Mas as histórias revelam muita humanidade por trás da tarefa que cada um escolheu exercer.

Ler a revista “Histórias de Trabalho em Bagé” é um convite à reflexão, à admiração e a uma narrativa literária que mescla realidade e ficção em um mundo que também é o nosso.  

*Revista com textos de estudantes do 6º semestre dos cursos técnicos em Agropecuária e Informática do IFSul. O trabalho foi produzido durante as aulas de Sociologia. A publicação é fruto da parceria com a professora Clara Dornelles por meio do Projeto de Extensão da Unipampa Escrita Colaborativa e Experimental no Jornal Universitário do Pampa, Junipampa (PROEXT-MEC).

 

Capa da revista.

Capa da revista.

 

Escrito por Giuliana Bruni, jornalista e colaboradora.

Junipampa