Ano 11 Nº 013/2023 – Dossiê temático Vozes da Fronteira

As representações dos espaços de fronteira nos meios de comunicação são, na maioria das vezes, construídas com a mobilização de elementos estereotipados ou pejorativos. Fruto de simplificações, as matérias jornalísticas e as séries ficcionais que associam os limites nacionais com espaços de contrabando, de ilegalidades e de violência são bastante comuns.


Contudo, essas regiões são constituídas historicamente a partir dos processos de formação dos Estados nação e de delimitação de seus territórios, o que pode não representar, na prática, um limite concreto. São herdeiras, portanto, de uma antiga e rica integração que, atualmente, reflete-se na opacidade ou no enfraquecimento dos limites oficiais, uma vez que as dinâmicas sociais e culturais, muitas vezes, desconsideram as demarcações nacionais.


A fronteira Brasil-Uruguai surge a partir de embates, processos bélicos e tratados de demarcação territorial que se estenderam ao longo dos séculos XVIII e XIX. As heranças simbólicas, as representações atuais do território fronteiriço na mídia e a realidade socioeconômica da região, frequentemente, relegam a esse lugar um caráter marginalizado, colocando-o distante dos grandes centros de decisão política e econômica em ambos os países.


Ao viver nessa fronteira, podemos constatar que as vozes que circulam nas mídias de referência não coincidem com as vozes aqui produzidas, veiculadas nos espaços midiáticos e nos produtos culturais locais. Entendemos por vozes sociais aquelas posturas ou pontos de vista, que segundo Bakhtin e o Círculo, corresponde a posições axiológicas, ou seja, enunciações concretas que carregam posicionamentos ideológicos. Vivenciamos, ao mesmo tempo, integração e contrabando, crimes internacionais e famílias binacionais. Partilhamos línguas, costumes, músicas, danças e comidas. E até rivalidades.


Assim, da vontade de fazer emergir as distintas vozes daqui, deste lugar, nasce o projeto de extensão “Vozes da Fronteira”. No ano de 2021, as atividades do projeto foram desenvolvidas de forma conjunta com a Sociedade Uruguaia de Socorros Mútuos, tendo em vista a atuação da entidade e o apoio às diversas necessidades de imigrantes uruguaios com relação a questões de ordem legal ou jurídica.

Ademais, a Sociedade Uruguaia, como é conhecida em Bagé, caracteriza-se como um ambiente de integração cultural e acolhimento das diversidades. É onde são celebradas festividades repletas de intercâmbios culturais e artísticos, como, por exemplo, as que resultaram na criação da cuerda de tambores de candombe a “Grillos Candomberos” que nasceu no projeto Tambor sem Fronteiras coordenado por Adriana Gonçalves Ferreira, que conta com a participação da Unipampa.


Para além de buscar uma interação dialógica com a sociedade, com o intuito de reelaborar sentidos a partir do resgate e da preservação do patrimônio histórico e cultural, pretendemos refletir sobre a formação acadêmica e cidadã do aluno de Letras – Línguas Adicionais: Inglês e Espanhol e Respectivas Literaturas, tendo em vista a necessidade de contextualização quanto à região onde se insere a Unipampa e o curso. Participar do projeto foi uma oportunidade para o discente desenvolver o pensamento crítico, conhecer novas perspectivas e ter contato com uma realidade que pode ser distinta da sua, oportunizando uma atuação responsável e atenta ao contexto social. Desse modo, o projeto foi desenvolvido, nesta primeira edição, de forma integrada ao componente curricular Fronteira e Sociedade, mas também insere-se no âmbito do Programa de extensão Centro de Línguas do Pampa – CLIP.


Nesta parceria, as atividades foram desenvolvidas a partir da exibição do filme “La Sociedad”, curta-metragem que corresponde a um episódio do longa-metragem Fronteirz@s, (produzido em 2021 com recursos da Lei Aldir Blanc RS) para os alunos, mesmo antes da estreia oficial. Naquele momento, a diretora do curta-metragem, Adriana Gonçalves, debateu aspectos técnicos e de conteúdo do filme com os discentes, que tiveram uma participação massiva, ainda que no contexto de ensino remoto imposto pela pandemia de Covid-19. Nos demais encontros do componente, houve a preparação, pesquisa, produção e apresentação das propostas de textos multimodais realizadas pelos alunos. O presente dossiê temático é, então, fruto dessas produções que resultaram de uma reflexão sobre a integração, as diferenças, a diversidade e as semelhanças entre as culturas brasileira e uruguaia, nesse espaço de fronteira.


A primeira produção é o infográfico “Culturalidade em La Sociedad” produzido por Calebe Veiga Dias Rodrigues, Jolye Isabelle Delza da Silva Cipriano e Shelley Tainan Núñez Pacheco. Na proposta, os alunos elencaram os grandes temas do episódio “La Sociedad”, recortaram algumas das falas e diálogos dos personagens retratados no filme e organizaram em um leiaute bastante atrativo e de fácil compreensão.


A segunda produção é o audiovisual “A presença do universo uruguaio na cidade de Bagé/RS”, de Amanda Hirdes Bica, Ingrid Nash Cardozo Saravia e Luana Dantas Camara. Mesclando fatos históricos, depoimentos e percepções pessoais, as alunas relacionam um breve histórico da Sociedade Uruguaia com o curta “La Sociedad”.

A terceira proposta, intitulada “Fronteriz@s La Sociedad”, também formatada como uma produção audiovisual, relaciona o longa-metragem Fronteriz@s com os conceitos e ideias de fronteira. Kassandra Naely Rodrigues dos Santos, Caroline Poschi Vasques, Bruna Machado da Rosa e Yasmym Alessandra Rodrigues dos Santos apresentam suas percepções a partir de imagens do filme e de imagens captadas pelas próprias alunas.


O quarto e último trabalho produzido pelos alunos é um podcast, formato bastante difundido nos últimos anos e que vem ganhando muita audiência devido à sua facilidade de consumo. Em “Los bandoleros”, Julia Cristina Alves Barbosa e Vinícios Lima Ferreira comentam sobre a integração cultural na fronteira e o candombe como expressão artística, aspectos presentes no filme que reforçam os laços sociais da região.


Para a diretora do curta, Adriana Gonçalves Ferreira o filme trouxe inúmeros olhares acerca do ambiente da educação, contemplando compreensão e diálogos sobre a dimensão da cultura de fronteira, no âmbito da linguística, trazendo o debate sobre a presença do portunhol popularmente identificado como a língua mãe da região, o hibridismo e multiculturalismo presentes no conteúdo do filme, assim como da fronteira Brasil-Uruguai, e seus aspectos culturais em torno do candombe, das artes plásticas, da gastronomia e processos comportamentais, sociais e profissionais da região. Até mesmo a possibilidade de conhecer o gaúcho da fronteira, que se diferencia do imaginário e do sentimento de ser gaúcho que habita e se espraia pelas outras regiões do RS.


A exibição do filme no ambiente virtual nos apresentou a pedagogia do cinema e as práticas pedagógicas que vêm sendo desenvolvidas em espaços de ensino. Observar o processo do cinema na educação, e também a interdisciplinaridade e o ensino, observar a experiência que traz o conhecimento por meio do letramento da linguagem audiovisual e das práticas pedagógicas de fazê-lo. São questões que vem ao encontro de Fazenda (2008), que nos leva a refletir sobre o enfoque na relação do professor como ser, o que na reflexão da diretora do curta, se encontra com a identidade da docente (no caso, Sara Mota, que nasceu em cidade gêmea no coração da fronteira em Livramento/Rivera), e como saber ser, tratando-se de questões de interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, e as possibilidades de observar o mundo, ultrapassando os limites da sala de aula, utilizando o audiovisual.


Os textos multimodais de autoria dos alunos de Fronteira e Sociedade evidenciam, desse modo, a relação ensino, pesquisa e extensão que está intimamente imbricada nas atividades do projeto. O ensino está contemplado na inserção do projeto no componente curricular, considerando-se também a possibilidade de experimentação. Além disso, a contextualização histórica e social da região, que são conteúdos da disciplina, são um dos elementos presentes no projeto.

Ao realizarem as atividades propostas, os discentes também colocaram em contato vivências de pesquisa e de extensão. Assim, identifica-se no projeto uma via de mão dupla entre universidade e sociedade, uma vez que a universidade necessita dos conhecimentos da comunidade para elaborar uma produção acadêmica. Ao mesmo tempo, a comunidade pode contar com a universidade para fazer o resgate de uma parte importante de sua história, podendo acessar esse conhecimento que estará disponível nos meios digitais.

Autores:

Helyna Dewes – Produtora Cultural na Pró-reitoria de Extensão e Cultura da UNIPAMPA.
Coordenou o projeto de extensão Vozes da Fronteira. Doutora em Comunicação pela UFSM.


Sara dos Santos Mota – Docente do curso de Letras-Línguas Adicionais: Inglês, Espanhol e
Respectivas Literaturas da UNIPAMPA Campus Bagé. Ministrou a disciplina Fronteira e
Sociedade em 2021. É Doutora em Letras pela UFSM.


Adriana Gonçalves Ferreira – Integrante da Sociedade Uruguaia de Socorros Mútuos.
Coordenadora do Ponto de cultura Pampa Sem Fronteiras. Produtora Cultural. Integrante do
GEPEIS – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Imaginário Social da UFSM. Mestra
em Patrimônio Cultural pela UFSM e Educadora Audiovisual.

Deixe seu comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Junipampa