Ano 07 nº 009/2019 – Coluna da Mariane
Por Mariane Rocha
Olá pessoas que me lêem, é uma alegria imensa estar de volta ao Junipampa e ter esse espaço para conversar com vocês! A ideia dessa coluna surgiu a partir de um projeto pessoal que estava em andamento no ano passado em que eu escrevia newsletters sobre literatura e enviava via email àqueles que estavam interessados. Surgiu o convite, então, de reproduzir aqui na coluna essas newsliterárias, para ampliar o alcance e facilitar a leitura. E eu, que já tenho um histórico com o Junipampa, topei na hora! A vida, entretanto, ficou complicada no fim do ano passado e eu dei uma pausa nas news. Agora, estou reorganizando a vida e as escritas e, aos poucos, vamos nos encontrando por aqui, por email, por todos os lugares. Abaixo vocês lêem a primeira newsliterária, que foi escrita em setembro do ano passado.
A ideia, mais do que recomendar, sugerir e/ou fazer resenhas de livros – porque isso a amazon já faz – é compartilhar com vocês uma perspectiva pessoal de leitura – a minha, yay – e discutir questões sobre a literatura que eu acho que podem interessar diferentes tipos de leitores.
#1
*** leituras
Eu amo coincidências literárias. Eu não sei como que vocês escolhem os livros que lêem, mas eu vou deixando a vida me levar. Leio o que aparece, o que me dá vontade na hora, depende do humor, da recomendação, etc. O kindle (amazon, mande mimos) me ajuda muito nesse processo, já que compro qualquer ebook e ele já fica disponível na hora, evitando aqueles dias de espera pelo correio e/ou a frustração de comprar livros numa cidade pequena onde as livrarias não têm lá muitas opções.
Em setembro de 2018, então, eu encontrei um conhecido vendendo via instagram o livro Estela sem deus do Jeferson Tenório. Esse é um livro que eu queria ler há tempos, desde antes de seu lançamento, porque conheço o autor. Tenório mora em Porto Alegre, é professor de literatura, escreveu um livro que eu amo e sempre recomendo chamado O beijo na parede e já veio a Bagé umas duas vezes, falar para os alunos de Letras da Unipampa. Eu juro que nunca vi alguém falar tão bem de Dom Quixote em toda minha vida, e olha que tive professores que faziam até mesmo Os Lusíadas parecer algo que eu gostaria de ler – spoiler: sofri em cada página d’Os Lusíadas. Tenório – o palestrante e o autor – é de uma sensibilidade sem tamanho e cada trecho de O beijo na parede dói de uma forma que eu não sei explicar.
“Para Mariane, amante da literatura, espero que goste dessa história sobre o desamparo”
Já na época que Tenório veio a Bagé, ele falava do seu projeto de Estela sem Deus que, se eu não me engano, ainda não tinha esse título. E, em algum momento depois disso, eu li um capítulo que ele me enviou e pensei que esse seria um livro significativo pra mim. Estela sem deus começa com uma nota do autor:
“Este livro é uma obsessão. Uma profecia inventada. Uma espécie de vida imaginada a se cumprir. (…) Estela está nesse livro porque precisava existir. Na verdade, Estela sempre existiu.”
Estela é uma protagonista envolvente que, apesar de estar no fim da infância, começo da adolescência, vê a realidade ao seu redor com bastante maturidade, condição que a vida exige dela, já que enquanto mulher, pobre e negra, as adversidades que enfrenta são constantes. Vamos acompanhando, em primeira pessoa, o desenvolvimento dessa jovem, os sofrimentos da mãe, o apego ao irmão, as violências que essa família sofre diariamente, em uma narrativa rápida e direta, que problematiza a religião, o racismo, a sexualidade, a família, a periferia, a pobreza, a fome.
“Na hora de comermos, ela puxou um Pai-Nosso e uma Ave-Maria, em seguida, agradeceu pela comida. Eu e o Augusto fizemos o mesmo, pois nunca tínhamos rezado antes de comer, e não pude evitar lembrar a última vez que rezei: quando eu estava na frente de um bandido naquela casa em Viamão. Na hora tive vontade de chorar. Mas dominei minha tristeza, pois é isso que se faz quando se quer conservar certa coragem dentro da gente, e também não queria que minha madrinha pensasse que eu tinha algum problema psicológico por ficar chorando, assim, sem mais nem menos, mesmo que eu tivesse o pranto como obrigação por ser filha de Oxum. ” p. 92
Enfim. Estela sem deus foi uma leitura rápida que eu fiz, acho que em dois ou três dias, mas nem por isso ela foi fácil de digerir. O beijo na parede continua sendo meu preferido do autor, mas esse romance com certeza vai ser um dos que eu vou voltar e reler várias vezes no futuro, porque eu acho que ele tem que ser apreendido aos poucos. Adorei conhecer a Estela e tenho certeza que vocês também vão.
A Estela acabou fazendo mais sentido pra mim com a minha segunda leitura de setembro: Eu sei porque o pássaro canta na gaiola da Maya Angelou, livro da TAG experiências literárias daquele mês. Embora eu já tivesse ouvido falar da Angelou, eu nunca tinha lido nada dela e, de acordo com a revistinha da TAG, esse é um dos seus livros mais famosos:
As edições da TAG são impecáveis (clique aqui para assinar com meu código promocional, aí vocês ganham R$35 reais para comprar em produtos da loja e eu também!) e tá sendo uma experiência maravilhosa pra mim ser associada deles, eu amo os livros e na maioria dos meses consigo ter uma experiência bem imersiva nas leituras, graças a todo o cuidado que a TAG tem mandando dicas sobre os livros antes da caixinha chegar e dos mimos, que tornam a experiência mais completa.
Eu sei porque o pássaro canta na gaiola, é narrado também em primeira pessoa, pela própria Maya Angelou. Ele é uma espécie de autobiografia da autora que passou sua infância e adolescência em um EUA totalmente segregado:
“Em Stamps, a segregação era tão completa que a maioria das crianças Negras não tinha a menor ideia de como os brancos eram. Fora isso, eles eram diferentes, deviam ser temidos, e nesse medo estavam incluídas a hostilidade do impotente contra o poderoso, do pobre contra o rico, do trabalhador contra o patrão e do maltrapilho contra o bem-vestido.” p. 40
Maya é uma personagem narrada com bastante profundidade psicológica e, especialmente por ser um livro de memórias, ou seja, uma narradora adulta que lembra do seu passado, temos uma problematização de sentimentos da infância que somente um adulto é capaz de fazer. Essa é uma das diferenças do livro da Angelou para o de Tenório: Estela é uma narradora-adolescente que conta as situações de seu presente, não está lembrando dos acontecimentos em um período posterior. Isso deixa a narrativa bastante densa, porque vemos a ingenuidade e a inocência da narradora perante os episódios absurdos da vida. Mostra, também, o talento do autor, ao fazer verossímil os pensamentos de uma menina. Maya, por sua vez, é analisada perante o olhar da própria Maya mais velha, uma estratégia super interessante que nos faz imaginar o quanto daquilo que foi narrado é verdadeiro – lembramos que se trata de uma espécie de autobiografia – e o quanto foi inventado posteriormente, já que uma das coisas que chama atenção nessa obra é a riqueza de detalhes e a linearidade com que a história é narrada.
Assim, na minha experiência, uma obra complementou a outra, embora se passem em contextos tão diferentes: Estados Unidos dos anos 30 e Brasil dos anos 2000. Ambas mostram porém um racismo que, embora em Eu sei porque o pássaro canta na gaiola fosse naturalizado ao extremo, em Estela sem Deus ainda está presente nas estrelinhas de um cotidiano cruel. Além disso, as duas obras tocam na questão da violência sexual, mas em Angelou de forma bem mais explícita, já que contém uma cena de estupro bem detalhada e, em função disso, a obra foi censurada por vários anos em diferentes lugares. Recomendo igualmente as duas obras: a de Angelou, um clássico da literatura norte-americana e a de Tenório, um maravilhoso exemplo da nossa literatura contemporânea.
*** um poeminha para animar a semana
As casas abandonam a si mesmas
fogem de si mesmas
um dia você retorna
e a casa não está lá
está apenas seu molde
casca ou carcaça
sai então à caça
da casa
em viagem
ou fica lá
onde já não está
Ana Martins Marques em Como se fosse a casa (uma corrrespondência)
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um beijo e até a próxima newsliterárias,
Mariane Rocha
é leitora desde que se conhece por gente, formada em Letras – Português, Inglês e respectivas Literaturas, especialista em Literatura Inglesa e mestranda em Literatura Comparada. Professora de Português, Literatura e Inglês no IFSul – Jaguarão.