Ano 11 Nº 081/2023 – “A Maria é da pena”

Por Emanuelle Tronco Bueno

Ah, a escrita… Quão desafiadora essa tarefa pode ser? Escrever histórias da nossa sala de aula fez-me sentir como meus alunos: há muito para dizer; há dificuldade de sintetizar. Produzir um texto sobre o experenciado na própria trajetória profissional é um exercício minucioso de tentar traduzir sentimentos e acomodá-los em palavras, linhas e parágrafos. Não é simples. É contar uma história em que a protagonista muitas vezes vê-se oculta, pois ao se retirar de cena consegue conferir o protagonismo. Há muito para dizer sobre o vivido em uma sala de aula. Ouso sugerir que este é o lugar mais mágico do universo: ali tudo se cria, (re)inventa-se, projeta-se, alimenta-se.

Em 2009, quando era uma menina de 16 anos ingressando na graduação, uma professora disse: “o jornalista é um contador de histórias”. Essa frase reverbera hoje em minha mente, pois sinto-me neste ato “contando” minha própria história com a educação. Ao mesmo tempo, sinto que não sou a verdadeira escritora, pois ouço vozes e enxergo semblantes sorridentes e orgulhosos enquanto redijo este texto. O jornalista até pode contar histórias, mas não há nada mais recompensador do que ajudar um jovem a confiar em si e a escrever a sua própria história.

A minha afinidade com as “letras” é nutrida por raízes profundas. Lembrome de ajudar minha avó, Maria, a escrever cartas aos amigos em todos os Natais. Eram mais de cem – escritas à mão. A lembrança dos livros, do exemplo de uma mulher à frente do seu tempo, juntou-se à figura de minha mãe, também professora. Desde pequena eu escrevia cartas, cartões comemorativos, fazia longos textos e homenagens, tudo isso inspirada na “Maria da pena”, como carinhosamente meu avô se referia à minha avó, justificando o fato dela não saber sequer fritar um ovo, algo na contramão dos papéis que então lhe eram impostos.

O destino estava posto, deparei-me com duas profissões e uma só vocação: promover a escrita. Minha avó ensinou-me que a escrita cura dores mais profundas; ela também é capaz de salvar, emocionar, aproximar e educar. Como pode algo tão simples ser ao mesmo tempo tão envolvente e profundo? Esse amor que desejei transmitir aos meus alunos. O mesmo amor que minha avó cunhou em mim.

O primeiro trabalho de escrita quando ingressei no ensino público como professora de Português foi uma oficina de crônicas realizada com o 9º ano. Ou seja, perante jovens de 14 e 15 anos. A realidade ainda impunha aulas remotas e, depois, semipresenciais. Uma proposta de produção textual a ser desenvolvida na campanha gaúcha, especificamente em Bagé, um município com 210 anos de história, localizado ao sul do país e que faz fronteira com o Uruguai. Nesta terra fértil, há um hibridismo de costumes brasileiros e uruguaios. Isso fala muito sobre o perfil dos meus alunos. O município está progredindo, mas o déficit escolar, que já era elevado, deixou marcas ainda mais profundas durante a pandemia. Somos uma região subdesenvolvida e a educação é, ao mesmo tempo, reflexo desta realidade e esperança de um futuro díspar.

Um cenário não só fisicamente distante do desenvolvimento econômico dos grandes centros, mas que ressalta as peculiaridades de uma cultura e de um povo de fronteira, que nasceu em uma cidade que teve seus tempos áureos no fim do século XIX e hoje sofre para retomar sua ascensão. Contudo, muitas marcas reverberam em sua alongada história. Por aqui, o inverno congela e o vento constante direciona o olhar para os campos perenes, que parecem fundirse ao céu. Tal céu, com o chão gaúcho da campanha, sempre formaram uma paisagem sem igual, um horizonte esplêndido. Inclusive, foi a partir da contemplação e da inspiração dessa paisagem que se desenhou a proposta dos estudantes escreverem sobre o tema “o lugar onde eu vivo”.

João, um aluno do nono ano, entrou na sala de aula, encabulado, cabisbaixo e de máscara – essa nossa exigência, então cotidiana, que protegia, mas também escondia. Era dia de um atendimento presencial agendado. Antes mesmo de se sentar, adiantou que era “péssimo em Português”. Logo interpelei sua fala e começamos a fazer as tarefas. João tinha medo, ele representava naquele momento o medo de tantos como ele. Ele ficou olhando para o lápis com medo de errar. Pequenas mãos trêmulas e inseguras diante daquela tarefa. Perguntava como escrevia cada palavra antes mesmo de começá-la. Imagino os milhares de pensamentos que o perturbavam naquele instante. Não obstante, prosseguimos juntos, superando a insegurança.

Na semana seguinte, o mesmo aluno apareceu com as atividades feitas, completas e com um texto para eu realizar a leitura. Quando eu disse que ele era “muito bom e que eu estava muito feliz com o resultado”, ele me olhoupensativo e me pediu para ajudar seu pai, assim como eu tinha o ajudado. Não entendi direito e ele me explicou que seu pai “não tinha estudo” e ele sabia que “o estudo muda a vida das pessoas”. Foram dois encontros presenciais em uma série de aulas remotas: como eu poderia ter mudado a vida de João?

Em nossas conversas, perguntei a ele se não gostaria de escrever a crônica da oficina sobre o que ele estava vivendo naquele momento, bem como sobre a importância do estudo. A conversa com João fez-me perceber o quanto eles precisavam ser ouvidos. Ou seja, que não estava difícil somente para nós, professores. Uma palavra de estímulo, uma escuta, um olhar. Foi aí que surgiu a ideia da “1ª Semana de Língua Portuguesa”, com encontros coletivos e individuais.

Afirmo que essa foi uma “virada de chave”, cansativa, mas com muita recompensa. Os alunos entravam, individualmente, na plataforma digital Google Meet, com horário marcado, para uma conversa informal que possibilitou definir a temática da crônica, amadurecendo a ideia inicial. Com isso, a familiaridade com o gênero foi ampliada, pois a partir do tema, enviei a eles exemplos de crônicas escritas sobre os assuntos diversos que eles queriam abordar. Conseguimos um sucesso de engajamento em relação às demais atividades da disciplina. No encontro, realizei o seguinte roteiro de perguntas: “Como é sua rotina? O que você fazia quando criança? Do que mais gosta?”. Essas indagações foram gerando, pouco a pouco, outras, até chegar na ideia de temática para a crônica.

Outro aluno, chamado Érik, foi uma grande surpresa na produção da crônica; não só por não realizar a grande maioria das tarefas desde o início do ano letivo, mas porque já havia me relatado várias vezes que não sabia como começar a escrever, aliás, dizia “eu nunca escrevi, professora”. Conversei diversas vezes com ele, remota e presencialmente, constatando uma imensa insegurança. Percebi que ele se sentia perdido. Precisei assegurar que ele não estava sozinho – mesmo sem ter certeza de que a ajuda havia sido efetiva.

Tínhamos agendado o encontro síncrono individual na plataforma digital. Neste dia, perguntei sobre a vida dele. Descobri que ele residia “na campanha” (como se identifica a região rural de Bagé), que fazia seus próprios brinquedos, que não tinha amigos na rua, que pensava no futuro, que trabalhava com o pai, que gostava dos animais e, também, fiquei sabendo da história do roubo de suasgalinhas no terreno de sua casa. Conversar com Érik estava sendo uma crônica da oralidade, as ideias brotavam e fluíam espontaneamente. Eu precisava apenas norteá-lo nos desafios de se conhecer, de se expressar e de escrever.

Esse encontro mostrou a importância da troca, da escuta, da interação professor-aluno. Um genuíno diálogo, um estímulo, um olhar. Isso tudo guiou Érik e ele escreveu a crônica mais cômica de toda a turma. A crônica é o retrato daquele aluno que conversou comigo e traz marcas de sua realidade de vida. No fim, ele exclamou em alto e bom som na sala de aula presencial: “Eu sou um escritor de comédias!”. E todos riram, fazendo sua teoria se firmar ainda mais. A opinião de Érik, ao cabo, foi compartilhada pela Secretaria de Educação de Bagé – uma vez que teve sua crônica publicada em obra municipal.

É claro que, apesar do desfecho, havia um grande desafio: o déficit no processo de escrita. Porém, posso atestar o sucesso da aplicação da escrita sobre a perspectiva de gênero como ação social, que identifica a escrita em etapas, considerando-a como processo a ser feito quantas vezes forem necessárias; além da cientificação para o aluno de que seu texto será socializado. Após, criamos um projeto na escola de transformar as crônicas em um livro, o que trouxe entusiasmo e motivação na caminhada de empenho e criatividade dos alunos.

Por fim, saliento que a conclusão de nossa atividade demandou um feedback para eles descreverem como foi escrever sobre o cotidiano. Neste momento, entendi que o caminho foi longo, mas a recompensa doce, pois consegui que eles se enxergassem enquanto escritores natos, vivendo o processo da escrita de uma forma natural. Aquelas mãos trêmulas deram lugar ao traço firme e emancipador da escrita. Senti-me, enfim, reverberando o legado da “Maria da pena”.

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