Ano 05 nº 097/2017 – Anarquismos, Pós-escolarização & Resistências: Conversações com Paulo Lisandro Amaral Marques

O pensamento científico racional é capaz de ser desenvolvido em outros espaços e momentos que não os escolarizados? A impressão que se tem é de que, se a igreja é a morada do pensamento místico ou mágico, a escola e a universidade é a catedral da racionalidade. Nesse sentido, anarquistas e pensadores associados a esse ethos fizeram consideráveis críticas à formação do pensamento científico e suas implicações sociais. Albert Camus, Max Stirner e Friedrich Nietzsche, por exemplo, de diversas maneiras, discutiram o movimento que levou a ciência a se constituir, modernamente, como uma religião laica que trocou Deus pelo Homem. Da mesma forma, Mikhail Bakunin advertia sobre o risco dos cientistas se erguerem como novos sacerdotes. Assim, o desenvolvimento desse argumento às últimas instâncias levaria a pensar práticas pedagógicas anarquistas que privilegiassem justamente a multiplicidade  de possíveis estruturas do pensamento. Estaria esse argumento, então, apontando de alguma forma para as ideias de Paul Feyerabend, que, no seu anarquismo epistemológico, estabelece uma crítica à obediência de regras e padrões fixos, pré determinados, objetivos, universais e “racionais”. Qual a sua opinião?

Concordo com você quando diz que o pensamento libertário clássico e até mesmo Feyerabend – que não se considerava anarquista – tem esse espírito livre que permite questionar aquilo que está instituído como absoluto. A ciência se tornou esse absoluto e os clássicos anarquistas bebem nessa fonte positivista e iluminista, sem dúvida. O que diferencia eles é que seu ethos a-nárkico os obriga a questionar qualquer autoridade caso contrário estariam contrariando a própria ideia de anarquia. Mas é importante destacar que grande parte dos anarquistas e do movimento anarquista instituído não consegue escapar de sua origem iluminista e racionalista. Talvez o anarquismo individualista que dialoga com Nietzsche, o pensamento existencialista e depois pós-estruturalista consiga superar tais questões – mas não é comum.

Por isso creio que Nietzsche é muito mais anárquico que qualquer anarquista moderno que tenha existido, inclusive os clássicos. Eu poderia dizer que quanto mais alguém se auto-define como anarquista menos é anarquista. Mas essa é uma visão minha, exclusivamente minha e sem nenhum argumento de autoridade.  Nesse sentido, digo que, nos dias de hoje, educação libertária ou anarquismo, são muito mais rótulos de práticas que já estão muito bem adaptadas ao sistema.

Em breve as escolas só contratarão professores “libertários”, o Estado abominará os reacionários – até porque essa é a única forma de manter as pessoas querendo e adorando cada vez mais a escola, as instituições. O capitalismo cada vez mais precisa de educação “libertária”, participativa, democrática, para que o sistema não tenha mais contestação. O que importa ao sistema capitalista é o dinheiro, o mercado. Logo, logo teremos “cursos para formação de professores libertários” oferecidos pelo Ministério da Educação, talvez pelas grandes empresas educacionais. É só esperar que você verá…

Os anarquismos contemporâneos – muitas vezes retomando os clássicos – têm discutido e proposto alternativas para todo um conjunto de instituições que floresceram no passado e definem as regras do jogo de poder, agenciando a vida das pessoas (como quartéis, prisões, igrejas, escolas, manicômios e até mesmo hospitais).

No entanto, desenvolvimento da modernidade como ideário ou visão de mundo esteve amarrado a uma série de liames, como a democracia representativa, a propriedade privada e a economia de mercado, que se tornaram estruturas incontestáveis para os projetos políticos que se sucederiam. Reformamos, refundamos ou readequamos esses termos, mas não os abolimos jamais. Tal efeito parece mais potente num momento histórico que, como alerta o filósofo Paulo Arantes, é de expectativas decrescentes. Para o autor, na retomada dos termos de Reinhart Koselleck, o tempo moderno se caracteriza por uma articulação bastante estreita entre o “espaço de experiência” e o “horizonte de expectativa”. Tal fenômeno carrega um conjunto de implicações, como a crise ou o esgotamento das energias utópicas. Nesse sentido, eventos como as Jornadas de Junho serviriam para apontar uma possibilidade de construção de um horizonte para um mundo sem horizonte, mas também poriam em dúvida se é possível  transformar o ‘extraordinário’ em ‘cotidiano’, nos termos dele.

Assim, quando o educador português António Nóvoa, em uma palestra de 1999, diz que, apesar das ideias de Ivan Illich terem conquistado muitos como uma utopia, ainda viveremos por muitos anos numa sociedade escolarizada. Você concorda com essa reflexão? Se, assim for, o que vai ser preciso para que a insurgência das multidões nas ocupações, okupações e manifestações garanta uma virada pragmática para a transformação do extraordinário no cotidiano?

Eu creio, nós, ocidentais, ainda estamos ainda imersos naquilo que Nietzsche chamou de niilismo, e que necessariamente leva a uma sociedade decadente – medíocre, fraca, incapaz. É, através dessa leitura, que vejo o ser humano ocidental moderno. O niilismo que Nietzsche fala é a negação da vida, do real, mas que, ao contrário da idealidade iluminista, não está vocacionada para um ‘bem’ ou um ‘mundo melhor’.

A vida é guerra permanente, é luta entre desiguais. Não há igualdade possível no sentido idealizado pelas ideologias e utopias modernas – idealidades, metafísica para os pobres. A noção de Paraíso na Terra foi o que levou ao nazismo, a todos fascismos e comunismos e é o que está levando à frente um projeto de capitalismo moderno demofascista. Eu chamo assim, por identificar essa democracia que se vive como também fascista.

Os anarquistas ainda estão nessa, mas não perceberam que já estão controlados. Assim como qualquer movimento que se diga anti-sistema, o anarquismo se vê por momentos como parte do sistema. Há inúmeros mecanismos de controle, como a dinâmica da “indignação controlada”. E é dessa forma que vejo os últimos movimentos anti-sistema. Não creio que exista um esgotamento de energias utópicas, ao contrário. Muitos movimentos e incluo anarquistas, marxistas. vivem de energia utópica, de nostalgias de passados que nunca existiram e de esperança de um futuro que nunca virá. Todos eles vivem se alimentando da tua utopia e da esperança, duas pragas que são responsáveis por formar qualquer religião – seja ela laica ou não. O que os ismos de esquerda ainda não perceberam é que o capitalismo prescinde de seres humanos para funcionar. É, a partir dessa lógica, que vemos o Estado e o Capital se preocupar com as pessoas. Assim, as lutas por direitos são como berros de animais indo para o abate.

O que o Nóvoa não percebeu, na minha opinião, foi clara tendência mundial inerente ao sistema capitalista. É uma tendência natural a escola desaparecer,  porque ficou obsoleta em relação a essa estrutura econômica e social. Quanto maior o desenvolvido do capitalismo e maior o acesso às tecnologias de informação, menos menos o sistema econômico necessitará de instituições que legitimem as aptidões, os talentos e a criatividade. A escola ainda existirá por muito tempo nos países cujo desenvolvimento do capital é mais atrasado; mas existirá como algo totalmente inútil. Seu objetivo será apenas garantir um emprego de baixo salário para os professores que restarem e oferecer lugar para colocar os filhos de quem ainda tiver trabalho. Não servirá nem mesmo para doutrinação.

Na Espanha, jovens padres católicos estão iniciando um movimento para que a disciplina de religião católica não esteja mais nos currículos das escolas, porque entender que isso afasta os jovens da igreja. Isso é visão do real. Em direção oposta, no Brasil, tanto a igreja como as religiões laicas (marxismo, liberalismo e anarquismo) ficam brigando para ter acesso à escola para doutrinação. O que esses grupos não conseguem entender é que a escola é um espaço de anti-saber, de anti-conhecimento, onde só se aprende a odiar tudo que é ensinado nela. Professores são odiados por alunos – com toda razão –, professores odeiam dar aulas – e com toda razão. Então, por que a escola ainda existe? Porque ainda cumpre algumas tarefas nas sociedades atrasadas. Nenhum ser humano desenvolve sua criatividade dentro de uma escola, desenvolve apesar dela.

Eu não creio em nenhuma virada na sociedade. Cada vez mais estou convencido de que não haverá saída para o Ocidente que não sua própria autodestruição. Nos contínuos processos de colonização, o sujeito ocidental destruiu outras culturas e impôs uma como única possível. Isso não tem mais volta. Todas resistências são para o mundo ocidental capitalista como momentos de “recreio da escola”, onde as crianças tem alguns minutos para brincar e depois voltam para a sala de aula. E, ainda por cima, na aula estará um professor “anarquista”, dando aulas de Educação Libertária, sem uso de provas, sem disciplina, em um ambiente divertido, onde ele será amado por seus alunos, que terão enorme alegria e prazer em se manter na escola. As gaiolas do futuro serão tão boas, confortáveis que sequer se notará que são em gaiolas….

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