Anarquismos, Pós-escolarização & Resistências: Conversações com Paulo Lisandro Amaral Marques

LUCAS ROSA: De forma geral, o meio intelectual ainda trata a escola como uma instituição definitiva e insubstituível, quase um a priori em qualquer discussão no campo da educação. Mesmo se observarmos os anarquistas históricos, como Bakunin, vamos ver uma discussão que se restringe aos limites que atravessam as competências da escola, por reconhecê-la em uma totalidade social e econômica de desigualdade – e não uma crítica a ela em si. Como proposta política, Proudhon, por exemplo, trata da educação politécnica, se aproximando de Marx e, evidentemente, pensando na perspectiva do espaço escolar. No entanto, quando, na década de setenta, Ivan Illich publicou Sociedade Desescolarizada, conquistou muitos pesquisadores e atividades, impulsionando uma utopia de se conceber uma educação para além da estrutura escolar. Hoje, observamos o que inúmeros autores expõem: uma crise do modelo europeu da escola pública, seja pela crítica à homogeneização que ela produz, seja pelo neoliberalismo crescente que se infiltra naquele contexto. Porém, a resposta que o meio intelectual produz ainda é de “reformar” ou “refundar” a escola para e através de novos caminhos. Qual a sua opinião?

Me permita iniciar esse nosso diálogo com algumas considerações sobre o que entendo por anarquismo, anarquia – sem nenhuma pretensão de verdade ou conceito absoluto. Em seguida, entrarei na questão que você propõe sobre escolarização e  como se desenvolve esse debate a partir de Illich. Isto é, observando o que poderíamos chamar de uma atualidade do tema da escolarização/desescolarização no contexto da chamada “crise da escola moderna”.

Então, vamos lá. Entendo que a anarquia é um ethos filosófico, ou seja, um comportamento do Si com o Outro, portanto, uma ideia do que é o ser humano (no sentido ontológico do aquilo que é) e uma ideia de qual deveria ser (dever-ser) em relação ao Outro, à vida social. Nesse sentido,  a an-arquia (sem governo) é uma perspectiva que aposta (sendo uma aposta não é nunca determinista) na relação com o outro, tendo como base alguns pressupostos, como a autonomia individual, o apoio mútuo e o auto-governo, seja ele individual ou coletivo. A perspectiva que será resumida por Faure de que “se você é contra qualquer a autoridade e luta contra ela você é um anarquista” resume essa ideia e/ou comportamento. A partir dessa noção, podemos pensar que anarquistas, num sentido amplo, sempre existiram em qualquer sociedade – isto é, indivíduos que não aceitavam qualquer autoridade sobre sua vida ou ação. Desde a antiguidade, temos filósofos com esse comportamento, como Sócrates e Diógenes de Sínope, passando pelos filósofos renascentistas ,como Rabelais, Montaigne, os iluministas, como William Goldwin, até os libertários modernos, como Stirner e Nietzsche – que os anarquistas tradicionais preferem ignorar – e  anarquistas clássicos, como Proudhon, Bakunin, Kropotkin.

Dessa forma, interpreto a passagem da ideia sobre o “dever-ser” o ethos anárquico para o centro de uma construção ideológica, quando se ganha o sufixo “ismo”. Isso ocorre a partir do Iluminismo (nascimento da cultura das “luzes”, das ideias de como o homem e o mundo poderiam ser melhores do que são através do uso da razão). O anarquismo enquanto doutrina ideológica é filho do Iluminismo e da Modernidade – filha marginal, diga-se de passagem, pois tem mais dois irmãos que serão reconhecidos e predominam na disputa de corações e mentes do Ocidente até hoje, o liberalismo e o marxismo (este sendo a consequência do jacobinismo). Assim o anarquismo clássico irá se desenvolver no plural e não no singular. Teremos muitos anarquismos na sociedade moderna: anarco-comunismo, anarco-individualismo, anarco- coletivismo, anarco-sindicalismo e vários outros que surgirão até hoje.

Essa pluralidade também aparecerá nas propostas educacionais dos anarquistas. Teremos as Escolas Modernas de Ferrer, a cooperativa educacional da Colmeia com Faure, o autodidatismo como prática permanente dos anarquistas, as “palestras populares” criadas pelos anarquistas-individualistas da França do Século XIX – Emile Lamote, Albert Libertad e Victor Serge, como seus mais importantes representantes. Por isso, falar de uma proposta anarquista de educação sempre terá que ser no plural. Alguns elementos serão comuns, seja o tripé que conforma as ideias forças que originam a anarquia como filosofia política: autonomia individual, apoio mútuo e autogestão (ou auto-governo), como  também o anti-estatismo, o racionalismo, a co-educação entre classes e sexos, a educação sem prêmio e castigo. Estes elementos, se na época em que os anarquistas praticaram (fim do século XIX e primeiras décadas do XX) eram concepções revolucionárias, hoje já estão plenamente integradas aos modelos das pedagogias contemporâneas.

Em função disso, é possível identificar algumas explicações para a visão anarquista da escola. Como filhos da razão e do Iluminismo, os anarquistas serão influenciados pelo positivismo e pelo progresso através do pensamento científico. Dessa forma, os anarquistas denominavam as escolas modernas de escolas racionalistas para uma educação científica. A presunção de que as ideias a respeito da sociedade podem ser construídas em caráter científico é uma das características de toda ideologia moderna – e o anarquismo como ismo não foi diferente. O que diferenciava os anarquistas tanto dos liberais como dos marxistas é a visão sobre o papel do Estado na educação. Liberais e marxistas podem ter visões diferentes sobre o grau de intervenção do Estado na educação mas nunca questionarão que é o Estado que regulamenta e coordena.

A educação como instrumento fundamental para a sobrevivência de uma cultura é parte de todo e qualquer grupo humano. No caso do Ocidente, essa ideia terá como ferramenta fundamental a escola. E mais: a escola obrigatória e estatal – já que mesmo as privadas só existem sob controle do Estado. Uma escola não-estatal é o que caracteriza a proposta educacional anarquista. Proudhon defenderá uma educação comunitária, assim como Faure defenderá uma cooperativa educacional. Não haverá discussão sobre não ter escola, mas é possível identificar a prática do autodidatismo como uma constante dos  anarquistas – e é o que poderíamos dizer que mais se aproxima de uma ideia de desescolarização.  Assim, a questão central dos argumentos de Illich é a crítica aos resultados da escola estatal e institucional – o que talvez explique porque será entre os anarquistas e libertários que tais ideias terão grande aceitação. Nessa discussão, observa-se, por exemplo, com destaque a ineficácia daquilo que proposto como a “inclusão social”, cujo resultado tem sido de exclusão fundamentalmente das classes pobres.  Através de críticas como essa que observamos as ideias de Illich se aproximarem também das perspectivas liberais. Não é por acaso que nos Estados Unidos a desescolarização é uma realidade há bastante tempo. Mesmo que haja um controle por parte do Estado, não é nada que se compare à proibição em lei como a que vigora no Brasil.

Dessa forma, podemos compreender um pouco dos motivos pelos quais a escola ainda é, na denominação de Illich, a vaca sagrada do Ocidente – objeto intocável para nossa cultura. Se avaliarmos as disputas políticas que se dão no interior do Estado é fácil compreender que os contendores predominantes (liberais e socialistas) disputam o espaço da escola – a discussão do Escola Sem Partido é um dos capítulos, talvez o mais tosco destes. Além disso, no campo socialista, ainda encontraremos correntes anarquistas que apostam na escola, projetando, assim, talvez uma “escola anarquista” que não deve ter nada que diferencie do projeto marxista. Do meu ponto de vista, não há nada mais anti-anarquista que um espaço de doutrinação. Mas essa é a cultura do ismo.

Nesse sentido, entendo que os intelectuais, sejam de direita ou esquerda, liberais, marxistas ou anarquistas, acabam  atuando na permanente disputa por poder no âmbito do Estado. E, sendo assim, reforçam as instituições educacionais como consequência dessa lógica. Mesmo os anarquistas que estão dentro desse jogo (professores ou estudantes) contribuem para que a Escola continue sendo o único e exclusivo espaço possível para o acesso ao conhecimento legitimado. Nem os liberais (que no Brasil tem uma mentalidade pré-Século XVIII) fazem esse debate.

Illich trata bem do processo de quando a Educação se torna uma profissão e deixa de ser uma forma de adquirir conhecimento. Por isso, a preocupação dele com quem não tinha acesso a esse “lugar sagrado” do conhecimento e que não tinha outra forma de acesso. Hoje, a crise da Escola é em função de que a realidade que previa Illich já chegou. A revolução da Internet, das comunicações imediatas e universais, tornou a escola obsoleta. Quando Illich falava em desescolarizar a sociedade estava também querendo desescolarizar a cabeça de cada um. Tal processo evidenciaria que é possível o acesso ao conhecimento sem o monopólio dos espaços institucionais. Ele falava em “redes de aprendizagem” há  mais de 40 anos e  hoje podemos ver essa realidade em espaços como o Facebook e o Youtube, por exemplo. Essa forma de sociedade desescolarizada já é realidade para a classe média, seja nos países de capitalismo avançado, seja nos atrasados como o nosso. Enquanto isso, para a massa de filhos dos pobres resta a escola estatal do século XIX com a pedagogia do século XVI.

Por que os intelectuais não tocam nessas questões? Talvez por medo de perder seu papel de iluminadores que conquistaram nos últimos 200 anos. Ou perder o que Foucault teorizou como saber-poder, ou o que Nietzsche chamaria de vontade de verdade, que caracteriza os demiurgos de seres humanos…

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