Ano 05 nº 097/2017 – Anarquismos, Pós-escolarização & Resistências: Conversações com Paulo Lisandro Amaral Marques
Acho que você conseguiu bater na porta de uma questão que eu gostaria de adentrar. Na leitura de Ivan Illich, a alternativa proposta aos processos implicados na escolarização é o conceito de rede ou teia de aprendizagem. Em suma, a criação e a explicitação de uma ordem ou estrutura nos meios de sociabilidade que esteja permeada por uma práxis de construção de saberes e conhecimentos. Me ocorre que é um equívoco pensarmos o tema da escolarização nos dias de hoje tendo o conceito de rede de aprendizagem como um projeto ou possibilidade de ação no futuro.
O sociólogo francês Daniel Colson, a partir de uma leitura que vai de Proudhon a Deleuze, vai pensar o anarquismo como uma recusa à lógica de emancipação no terreno do futuro idealizado, mas como uma ética e uma prática situada no presente. De forma semelhante, o antropólogo David Graeber vai sinalizar que os princípios anárquicos (de auto-organização, socialização da propriedade, coletivismo etc.) vivem em disputa com outros princípios nas práticas e vivências cotidianas dos indivíduos. Segundo Graeber, sem nem percebemos, vivemos princípios anarquistas mesmo dentro de grandes corporações empresariais.
A leitura que Illich faz, no entanto, além de projetar essa forma de (auto-)organização comunitária como uma possibilidade futura, trata a escola como se não pudesse haver práticas que de algum modo, por meio e através desse espaço, desafiem a escolarização tradicional. Numa época de proeminência da circulação de informação, da invenção de redes e teias no meio virtual, etc., só parece estar mais explícito essa auto-organização – uma ideia que já aparece, de certa forma, em Paulo Freire, com os ‘círculos de cultura’. O que você pensa disso?
Interessante sua referência ao Daniel Colson, gosto da perspectiva dele; inclusive tem um artigo sobre Nietzsche e o anarquismo, que problematiza as afinidades do pensamento do filósofo com a corrente libertária, diferenciando o anarquismo clássico de um anarquismo contemporâneo. Outro autor que trabalha com a perspectiva do anarquismo aqui e agora é o inglês Colin Ward no livro ‘Anarquia em ação’.
Acho que o Ivan Illich, mesmo apontando para um futuro, situa como uma possibilidade presente, por reconhecer que a tecnologia poderia levar a cabo a essa proposta. Quando ele propunha as redes, já pensava no que era possível fazer naquele período mesmo. Nesse aspecto, que eu não colocaria Illich no campo da utopia, por interpretar suas propostas como possíveis na nossa própria realidade. Em contraposição, Paulo Freire, pela influência marxista e cristã, construiu seu projeto de educação na perspectiva do ‘homem novo’, da ‘sociedade perfeita’, de ‘irmãos’ e de ‘igualdade’. Dessa forma, o identifico como utopista, tendo apostado na reforma da escola. Hoje, faço orientação de estágio em Educação de Jovens e Adultos (EJA) e vejo o quanto esse espaço retrocedeu quando entrou para dentro das escolas. Paulo Freire criou sua metodologia fora da escola e hoje tenta-se implementá-la dentro. Não deu e não dá certo, porque a escola continuou sendo o que sempre foi: um espaço de exclusão.
Creio que a questão que não é abordada por quem discute a educação hoje é a necessidade de mudança de paradigma, rompendo com o pensamento escolarizado e construindo uma lógica de pesquisa – o que requer exercício de autonomia na busca do conhecimento. É preciso retomar a questão do autodidatismo, que foi tão importante para os anarquistas do passado. Isso não significa acabar com os espaços de aprendizagem, mas transformá-los radicalmente. Escolas devem ser cada vez menos escolarizadas. Isso não diminui a importância dos professores, ao contrário, os torna mais necessários, porém não na lógica atual. Hoje, o professor é o que Illich chamou de cabeça de computador; e, para isso, já existe o computador, que é muito mais eficiente. Então para que serve o professor? Essa é uma questão que não está na pauta da educação porque a educação é apenas mais uma profissão, mais um “trabalho”. Por que ainda existe cursos de licenciatura que não ensinam o professor a pesquisar e cursos de bacharelado que não ensinam o professor a ensinar? Por que a manutenção dessa divisão social do trabalho docente, que cria um profissional de primeira classe (pesquisador) e de segunda classe (licenciado)? Isso não tem mais sentido nenhum. Assim como não tem sentido que a escola mantenha esse monopólio do conhecimento. Não creio que isso mude tão cedo. E nem mesmo acredito que qualquer medida de cima para baixo tenha qualquer viabilidade. Creio em ações diretas para além da escola. Já tem gente demais envolvida com a escola e poucos que pensam para além dela.
Eventos como a Mobilização estudantil no Chile (2006), a Primavera Árabe (2010), Los indignados da Espanha (2011), o Occupy Wall Street (2011), as Jornadas de Junho (2013), o Não vai ter Copa (2014) e, mais recentemente, as ocupações nas escolas no Brasil (2016) têm forçado o meio intelectual à produzir novas leituras a respeito dos fenômenos sociais e políticos da contemporaneidade. Todos estes eventos se aproximam por estarem norteados por uma ética horizontal, plural e anticapitalista – e, por conseguinte, por estarem construindo uma nova práxis que responde ao desgaste da política institucional e partidária. Os ecos desses eventos, cuja pluralidade remete à imagem do rizoma de Deleuze & Guattari, podem ser observados no crescente resposta ao processo eleitoral com abstenções, votos brancos e nulos, no esgotamento do fetichismo lulista, e até em veredas mais nefastas, como o fortalecimento da figura do administrador do meio privado na política institucional. Dessa forma, você acredita que podemos pensar nas ocupações nas escolas como um gatilho para a invenção de um novo pensamento pedagógico?
Quando estourou as manifestações de 2013, ficou evidente que a crise das instituições chegava num ponto máximo – o que se agrava no contexto do PT que manteve uma enorme força nos movimentos sociais mais institucionalizados. Dessa forma, passaram a surgir sim algumas interpretações no campo da sociologia e filosofia. Eu destaco as leituras do pessoal do Giuseppe Cocco da UFRJ e do Bruno Cava, que utilizam as categorias de Gilles Deleuze, Giorgi Agamben e Antonio Negri. Com conceitos como nomadismo e rizoma, esse pessoal têm uma interpretação interessante sobre essa prática horizontal e autônoma dos movimentos. Eles têm um site chamado ‘Universidade Nômade do Brasil’, onde publicam textos nessa perspectiva. Acho que é por aí: para novos fenômenos acho interessante novas abordagens. Infelizmente vejo que alguns grupos anarquistas têm certo preconceito em relação aos autores da chamada filosofia da diferença e acabam ficando presos aos clássicos, como se fosse possível responder, através deles, questões que não existiam no passado.
Quanto à ocupação das escolas, eu tenho algumas dúvidas da eficácia na medida em que o movimento estudantil ainda é fortemente ocupado por partidos e seus interesses e que fazem o jogo da disputa de aparelhos em toda a ação. Muitas escolas ocupadas, por exemplo, que não tinham grêmios estudantis, logo após as ocupações criaram seus grêmios. O problema não é a criação de novos espaços de articulação e participação, mas estarem situados na mesma lógica institucional, isto é, atuando como meros aparelhos para disputa das ‘juventudes partidárias’. O mesmo ocorre nas universidades. No ano passado, aqui na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), ocorreu uma onda de ocupações, cuja pauta era o ‘Fora Temer’, e não a construção de espaços autônomos permanentes. Tão logo que a ‘agenda externa’ enfraqueceu, as ocupações terminaram.
Em Pelotas, venho trabalhando em parceria com duas okupas, que são espaços permanentes. Uma delas tem sete anos e é totalmente autônoma e a outra completou dois anos. Nesses espaços, não há presença de militantes partidários, o trabalho é construído numa outra perspectiva. Assim, creio que isso tem muito a ver com a contraposição que faz aos espaços institucionais; tanto as escolas como as universidades são espaços profundamente hierarquizados e burocráticos, que conseguem com sua máquina de poder enquadrar até os movimentos mais autônomos. A criação de fóruns e conselhos tem o objetivo de colocar a lógica de representação como única forma de atuação política, impedindo qualquer nova perspectiva como as assembléias e decisões diretas. Por isso, eu tenho diferenciado ocupação de okupação. As primeiras são funcionais aos interesses político-partidários, e as okupas (com K) são aquelas com perspectiva libertária. O desafio é fortalecer essas últimas e pôr em xeque as outras.
De qualquer forma, mesmo as ocupações nas escolas mais aparelhadas por movimento político-partidários desafiaram a estrutura de organização dos espaços (salas de aula, classes enfileiradas, horários impostos, etc.) e dos currículos (ao dar espaço para a discussão ou o estudo de temáticas que não entrariam no espaço escolar). Nesse sentido, o que a desestabilização da lógica do autoritarismo hierarquizado proposta nas ocupações e okupações pode indicar o sentido da construção de uma nova práxis pedagógica? Por exemplo, qual o ethos que assume o professor nesses espaços?
O que você chama de ‘desestabilização da lógica do autoritarismo hierarquizado’ realizado a partir das ocupações me permite problematizar essas práticas que consideramos revolucionárias. Qual o sentido profundo que elas têm realmente para um questionamento da educação como um mecanismo de controle? Eu creio que hoje o sistema de controle tem outras estratégias, tais como promover ele mesmo essa desestabilização para melhor controlar. Hoje o controle de corpos e mentes prescinde de hierarquias e autoritarismo para se impor.
Apesar de que, para a educação pública isso possa parecer uma novidade – visto que ainda predomina o modelo medieval –, a verdade é que o controle sem autoritarismo hierarquizado já existe nas escolas tidas como mais avançadas – geralmente no setor privado. É o auto-controle via participacionismo. É isso que os controladores querem, que os controlados se auto-controlem. Assim, eles irão criar seus conselhos e grêmios, irão escolher democraticamente seus representantes que irão dialogar com a direção, e, por conseguinte, se sentirão parte do processo de ensino-aprendizagem. Não há nada mais ilusório. É justamente muito mais moderno e eficaz na contemporaneidade, um controle sem autoritarismo e sem hierarquia explícita – mesmo os japoneses já faziam isso com as equipes no toyotismo, em contraposição ao fordismo. Dessa forma, a escola pública ainda é fordista, mas avança para o toyotismo, para aquilo que Dewey e Freire já defendiam no passado, isto é, uma “escola democrática”.
Agora me diga: quem realmente decide os conteúdos do saber legitimado na escola? O que é legítimo aprender ou não é? Essa é a prerrogativa de outra esfera, é a esfera do poder real, das corporações econômicas, do Banco Mundial e dos Estados. No mais, a participação horizontal de alunos, pais, professores e funcionários na construção da “escola democrática” é parte do jogo do biopoder da atualidade. Lembro de uma escola estadual de Pelotas onde um grupo de alunas queria criar um grêmio estudantil. A direção boicotou, marcou a reunião no dia que havia um campeonato de futebol na escola e ninguém participou da mesma. Logo depois, houve a ocupação da escola pelos estudantes. Foi então que a diretora saiu desesperada atrás das alunas que queriam criar o grêmio, chamando-as para criar imediatamente o entidade. É a lógica do poder. É melhor controlar os representantes do que um movimento ‘sem direção’, sem alguém para se negociar. Assim ocorreu na totalidade das escolas. Tudo culminou na criação de fóruns, conselhos e grêmios. Assim, professores começaram a ver que era necessário mais ‘participação’, como forma, não de segurar, mas de controlar a rebeldia. Por isso, a questão de fundo não é qual a forma mais democrática de funcionamento de uma escola, mas é questionar esses novos mecanismos de controle dócil. O conhecimento está monopolizado pelo Estado e pela escola. Onde está o real poder decisório sobre o conhecimento? Certamente não está dentro da escola.