Ano 05 nº 046/2017 – A greve tem função política?

Autor: Advogado e escritor Bruno Borin Boccia

O trabalho, como o conhecemos e vivemos hoje, teve suas origens na revolução industrial, onde a manufatura artesanal de um homem fora substituída por operações feitas por máquinas e em larga escala. Foi neste passado inglório que a forma assalariada e comprometida com um sistema de produção que visa o lucro nasceu. As condições eram péssimas, os ambientes eram extremamente insalubres, os empregados corriam riscos de vida, por operarem com pouca ou nenhuma instrução máquinas pesadas e perigosas; a alimentação dada era escassa e não era possível usufruir de tempo livre e suficiente para o descanso, lazer e outras atividades que permitissem evoluir para além daquela condição.

Contudo, notando a situação em que se encontravam, os trabalhadores quietos não podiam ficar e, quando tomaram consciência de suas identidades, interesses e insatisfações reagiram. Surgiram então os movimentos grevistas, que se engajavam, muitas vezes, em lutas sangrentas causadas apenas pelo singelo ato de se reunirem e se recusarem a trabalhar. A reivindicação consistia em mudanças, buscando maior qualidade nos ambientes laborativos e uma qualidade digna de vida e trabalho.

A greve, apesar de ser a única arma do trabalhador contra os empregadores, é delicada porque dependendo de suas proporções, pode comprometer a normalidade da vida quotidiana, ainda mais quando se tratar de um setor essencial como o de transportes. Contudo, não é o único ato de conflito que existe, os outros consistem em: boicote, sabotagem, ocupação de estabelecimento, piquete e braços cruzados. Embora curiosos os temas, voltaremos o nosso olhar apenas para a greve, estudando a sua importância para os dias atuais. Wagner D. Giglio nos ilustra as características históricas da greve em seu livro Direito Processual do Trabalho:

 

“A greve era um instrumento de luta, mecanismo de autodefesa dos trabalhadores, não obedecendo a nenhuma regulamentação. Imperava a lei do (economicamente) mais forte. A produção ficava paralisada até que uma das partes cedesse e voltassem os grevistas ao trabalho nas mesmas condições anteriores, para sobreviver à fome, ou atendesse o empresário aos pedidos dos trabalhadores, para evitar o prejuízo causado pela ociosidade das máquinas.
O Estado liberal dessa época não se imiscuía nas relações entre empregados e empregadores. Com o tempo e o recrudescimento dos conflitos trabalhistas, entretanto os governantes se deram conta dos prejuízos advindos à produção. Diante da conturbação da ordem interna e, principalmente, pelo empobrecimento da nação causados pelas greves, o Estado abandonou sua posição de alheamento e passou a interferir nesses movimentos, ditando normas para a solução dos conflitos trabalhistas.”

 

Na história mundial, o tema foi considerado inicialmente um delito, sendo registrada punição. em muitas legislações pelo mundo, a exemplo: A Lei de Chapelier, de 1791, proibia qualquer tipo de agrupamento profissional que visasse a proteção de seus interesses; O Código Penal de Napoleão (1810) a tipificava como crime punível com prisão e; Na Inglaterra, o Combination Act de 1800 também considerava crime a reunião de trabalhadores com fins protetivos. Com o passar do tempo, estes países foram abrandando suas reações à greve, e começando a tolerar as pacíficas, correspondendo a uma visão de que a greve é uma liberdade. Sendo a Itália o primeiro país a reconhece-la como um direito.

No Brasil a greve também não era vista com bons olhos, ou como ato sujeito à punição até o ano de 1946, quando, ela foi reconhecida pela Constituição apenas para atividades acessórias e a vedava nas fundamentais à sociedade.

Atualmente é reconhecida como uma liberdade e um efetivo direito, em quase todos os lugares do mundo. Ela se encontra na Constituição Federal de 1988 brasileira, no artigo 9º, que o consagra como direito exclusivo dos trabalhadores. Seguindo o rigor legalista, a greve pode ser definida como a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, da prestação de serviços ao empregador (lei 7.783/1989, artigo 2º). Nos dizeres de Gustavo F. Barbosa Garcia vemos:

 

“Assim, para ser considerada greve, a suspensão do trabalho não pode ser individual, mas do grupo de empregados, ou seja, coletiva. Mesmo assim, a greve pode não afetar toda a categoria profissional, ou mesmo não alcançar todos os empregados da empresa, hipótese em que é considerada parcial.
Além disso, a suspensão deve ser temporária, e não definitiva, por não se confundir com o abandono do emprego.
Por fim, na greve, a suspensão da prestação de serviços deve ser pacífica, pois vedada a utilização da violência a pessoas e bens. ”

 

No Direito brasileiro, a greve está regulada pela lei nº 7.783/1989. Nela encontramos os procedimentos para a sua realização, os direitos e deveres que os grevistas têm diante da situação de paralisação e reinvindicação de seus direitos. Para que ela aconteça, é necessário que haja uma negociação coletiva, podendo incluir a atuação do Ministério Público no caso. A referida lei coloca à disposição o recurso da arbitragem como ferramenta para auxiliar os empregados e empregadores.

Não resolvido o conflito, os sindicatos das categorias lesadas (como enfermeiros, transportadores, etc.) convocarão uma assembleia geral para definir todas as reinvindicações, como também o momento oportuno para realizar a paralisação. Se a categoria não contar com sindicato, pode fazer valer a sua vontade através até mesmo de uma comissão de trabalhadores interessados. Ressalta-se que é vedado o uso de violência, ultrapassar o tempo de paralisação celebrado no acordo de greve ou sentença do processo e paralisar totalmente os serviços essenciais ao cotidiano das pessoas.

Se todas as tentativas de negociação forem infrutíferas, os trabalhadores poderão se utilizar da greve para fazer pressão aos empregadores, de modo que estes, ao verem sua empresa sem produção, com a rotina interrompida, serão forçados a repensar o caso. É importante destacar que grande parte dos estudiosos do Direito veem a greve como limitada somente ao conteúdo dos contratos de trabalho e das convenções coletivas. Que, muitas vezes, não são cumpridos fielmente, deixando o ambiente inseguro, a condição do trabalho insalubre e a vida econômica dos trabalhadores instável.

Contudo, a greve não pode ser vista apenas do ponto de vista jurídico, porque se trata de um fenômeno social, uma manifestação da vontade de mudança de uma parcela da população inconformada com a situação opressora em que se encontra. E como todo ato de desobediência ao conformismo, às regras impostas pelos agentes mais fortes, foi tipificada como crime, foi vista com maus olhos e, só agora, dentro dos regimes democráticos, após a consolidação dos direitos humanos pelo mundo, fora vista como uma liberdade.

Por esta razão, observando a premissa contida na atual Constituição Federal; “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. Se pode inferir que os parâmetros para julgamento utilizados não seguem este princípio, tentando retirar, utilizando-se do rigor legalista o caráter social da greve. Ora, se o obreiro tem livre decisão sobre o que “protestar”, não se pode aceitar que somente deva pensar em seu contrato de trabalho e sim no que acontece ao seu redor ou com os outros trabalhadores, sejam de ramos próximos ou não. Abstrai-se daí que a greve pode ser solidária, ou até mesmo política.

Porquê? Não somente pelo teor histórico do movimento, mas também porque este artigo citado da Carta Magna está em consonância com o princípio da dignidade humana, que por si só deve regular os parâmetros para uma vida de qualidade, uma remuneração adequada e porque não uma aposentadoria satisfatória para os tempos onde já não é possível a pessoa prover sozinha o seu sustento. Corrobora conosco, o raciocínio de Maurício Coutinho Delgado:

 

“sob o ponto de vista constitucional, as greves não precisam circunscrever-se a interesses estritamente contratuais trabalhistas (embora tal restrição seja recomendável, do ponto de vista político-prático, em vista do risco à banalização do instituto – aspecto a ser avaliado pelos trabalhadores). Isso significa que, a teor do comando constitucional, não são, em princípio, inválidos movimentos paredistas que defendam interesses que não sejam rigorosamente contratuais – como as greves de solidariedade e as chamadas políticas. A validade desses movimentos será inquestionável, em especial se a solidariedade ou a motivação política vincularem-se a fatores e significativa repercussão na vida e trabalho dos grevistas”.

 

Importante observar que, no campo doutrinário, os estudiosos classificam a greve política como uma forma atípica do instituto, por não ser o motivo costumeiro dos movimentos e nem o pensamento principal dos julgamentos, que, em sua maioria, classificam o motivo político como abusivo. E, dentre os movimentos de greve política, há também os aceitos e os não recebidos. São denominadas greves políticas puras as que se pautam em reformas sociais e; greves insurrecionais as que operam contra as instituições e objetivam a derrubada do Estado. Assim diz Carlos Monís Lopes:

 

“Entende-se por greve política, em sentido amplo, a dirigida contra os poderes públicos para conseguir determinadas reivindicações não susceptíveis de negociação coletiva. Ou, mais genericamente ainda, a dirigida contra os poderes públicos nacionais ou estrangeiros. Dentro deste amplo conceito de greve política estão incluídas: a) as greves revolucionárias ou insurrecionais que, necessariamente, são gerais; b) as greves políticas puras, não insurrecionais. Estas, por sua vez, podem ser gerais ou parciais. Podem ir contra o Parlamento, o Governo (nacional ou estrangeiro), uma autoridade pública (nacional ou estrangeira) ou os tribunais. Podem consistir, finalmente, em simples greves de protestos, de certa duração e com finalidade demonstrativa ou em greves de luta de maior duração; e c) as greves de imposição econômico-política ou mistas, nas quais aparecem mesclados claramente os motivos profissionais e os políticos. Típicas greves mistas seriam aquelas dirigidas contra a política econômica do governo (políticas de rendimentos e salários, política de emprego etc.), as greves político-sindicais (garantias de atuação sindical) ou, num outro extremo, as greves motivadas pela luta por reforma (habitações adequadas, sistema fiscal redistributivo, dotação devida ao sistema educacional, transportes coletivos suficientes etc.).”

 

Vemos. através do nosso pequeno estudo, que a greve política é possível e que restrições a este instituto colidem de frente com o postulado no artigo 9º da Constituição de 88. Frisamos, que se os trabalhadores são livres para decidir sobre os temas que querem defender, é preciso aceitar que o instituto se torna um instrumento de pressão social e quiçá uma das formas de desobediência civil; em outras palavras, não só demonstração de descontentamento e demanda por mudanças, mas de mostrar o poder que o povo tem unido e que os poderes do Estado emanam do próprio povo, como a própria Constituição diz no parágrafo único do artigo que a inicia.

É, portanto, um pensamento novo que timidamente vem se formando, mas que causa preocupação à classe política, que resiste a entender as necessidades do povo. “O despertar para a Constituição, muitas vezes, é lento, mas, confiamos em que tal compreensão terminará por impregnar, também, o entendimento pretoriano, da mesma forma pela qual que foi se difundindo nos campos doutrinários. ”

 

Para saber mais: Desobediência civil – greve política – direito coletivo do trabalho.

Bruno Borin Boccia é natural de São Paulo, advogado, formado pela Universidade Paulista – UNIP –  pós graduado em psicologia judiciária e autor do livro de poesia As Pinturas Malditas (2013 – Scortecci).

 

Referências bibliográficas

Giglio, Wagner D. – Direito processual do trabalho. – 9ª Ed., Rev., Ampl., e adap. à Constituição Federal de 1988. – São Paulo: LTr, 1995;

Garcia, Gustavo Filipe Barbosa – Curso de direito do trabalho. – 10ª Ed., Rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016.

Monís López Carlos, O DIREITO DE GREVE Experiências Internacionais e Doutrina da OIT, Editora LTR – 1986

Delgado, Maurício Coutinho “Curso de Direito do Trabalho”, Editora LTr 6ª edição, 2007, página 1423

A respeito da legalidade da greve política – por João José Sady – Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10231/a-respeito-da-legalidade-da-greve-politica.

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