Um samba de breque: Numa e a Ninfa & Vida e Morte de J.M. Gonzaga de Sá/ Coluna Adriano de Souza

Imagem disponível em SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Cia das Letras, 2017, p. 238.

Imagem disponível em SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário.
São Paulo: Cia das Letras, 2017, p. 238.

 

Por Adriano de Souza

Se crítico literário fosse, certamente não faria este texto. É que a crítica de literatura, para chegar a discutir o valor de alguma obra, já foi e voltou umas trinta vezes tecendo relações, analisando, burilando e destrinchando uma penca de textos, seus legados e seus antecedentes. Nós, que temos culotes (piada interna), digo, nós que somos apenas leitores-que-gostamos-de-dar-pitacos desancamos a valorar as obras que lemos, sem dó nem piedade, já nas primeiras páginas. É que temos um interesse meio que turístico e que acaba sendo nosso salvo-conduto para falar das obras que lemos e isso, eu acho, não é crítica literária, mas posso estar enganado, é claro. Me comove a elegância beletrista que não tenho. Pois bem, esse preâmbulo é para sinalizar ao/à caro/a leitor/a que este texto é sobre valor, valoração, apreciação de um texto literário ou, mais explicitamente, é sobre não ter gostado de ter lido um livro ou de não ter gostado da coisa lida, porque a forma como ela foi elaborada não te sensibilizou ou não te convidou, enfim, não rolou o lance.

Pra quem, como eu, vinha empolgado lendo Recordações do Escrivão e Triste Fim de Policarpo, ler Numa e a Ninfa (1915) e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919) foi um estranho breque. Explico. Na tradição do samba de breque, o ponto alto da canção, digamos assim, é quando o samba para (breca) e o/a intérprete improvisa alguns versos à capela que podem ter um efeito cômico ou simplesmente expressar uma síntese ou moral da história, em seguida o samba volta de onde parou para seguir com ainda maior animação. Pois bem, o samba vinha forte, soando altivo com Isaías e Policarpo, brecou, esperei a declamação do intérprete, mas parece que ela saiu meio rouca, que um pigarro bem na hora atrapalhou. Ou será que eu teria me distraído e perdido o breque?

Numa e a Ninfa tem, pelo menos, duas dimensões ou planos bem definidos. Um deles, o que acho o mais interessante – e acho que vale o livro –, é o plano dos conchavos e articulações políticas do contexto de início dos anos de 1910. O livro de Lilia Moritz Schwarcz sobre Lima Barreto (referência completa ao livro, no final deste texto) ajuda bastante a compreender essa dimensão da obra. Nos conta a historiadora que, nas eleições presidenciais de 1909-1910, em que concorriam Rui Barbosa e Hermes da Fonseca, São Paulo estava encurralada numa posição  complicada: se apoiasse a dupla Hermes-Venceslau (união entre Rio Grande do Sul e Minas Gerais que representava o militarismo), assumiria um papel coadjuvante nas eleições. Restava, então, à oligarquia paulista apoiar o baiano Rui Barbosa, que era a candidatura de oposição, tendo sido Ministro da Fazenda do regime instaurado em 1889. Segundo Lilia Schwarcz:

 

    (…) a candidatura civil de Rui animou a população. Contando com recursos financeiros dos cafeicultores paulistas, pela primeira vez na história republicana brasileira um candidato à Presidência percorreu vários pontos do país em busca de votos; e a bordo de uma caravana muito vibrante. Na lógica da propaganda eleitoral de Rui, essa era a competição de um bacharel, advogado e jurista com um marechal do Exército. (…) Hermes da Fonseca, que contava com o apoio da maioria dos políticos dos estados, sagrou-se vencedor. Rui Barbosa acabou funcionando como uma espécie de cavalo de Troia para acalmar e distrair a oposição (p. 240). 

 

Ainda conforme a autora, apesar da derrota, a candidatura de Rui Barbosa congregou as elites descontentes com o militarismo, além do PRP (Partido Republicano Paulista) e de jornais como O Estado de S. Paulo e o Correio da Manhã. Essa articulação ficou conhecida como Campanha Civilista e conseguiu vitórias em capitais importantes como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, saindo, de certa forma, fortalecida da eleição de 1910.

É justamente esse o contexto político aludido pela obra Numa e a Ninfa, e a maneira pela qual esse cenário nos é apresentado me pareceu a dimensão mais interessante e inventiva da obra. Não se trata, contudo, de um romance histórico, desses em que personagens da “vida real” aparecem no plano da ficção, alimentando o enredo com seus feitos e andanças. Os especialistas melhor definem esse estilo como “romance à clef”, isto é, uma obra em que figuras identificáveis no plano histórico, dito real, aparecem na narrativa com nomes fictícios.

No caso de M. J. Gonzaga de Sá penso que a coisa também vai por aí. Trata-se da elaboração da biografia de M. J. Gonzaga de Sá – um senador no plano da ficção – pelo narrador da obra, Augusto Machado, que já no comecinho nos informa estar reunindo material para elaboração de biografias de políticos do país. Entretanto, o enredo do livro é muito mais sobre episódios da convivência entre ambos, através das memórias de Machado e das reminiscências de conversas entre ambos, de maneira que eventualmente o biógrafo acaba roubando a cena do biografado.  

Por outro lado, a contumaz crítica às elites, frequente na obra de Lima, em M. J. Gonzaga é bastante contundente, contendo, desta vez, outros ingredientes bastante relevantes, como, por exemplo, a questão do racismo científico e suas teorias raciais biologizantes, observados pelo narrador a partir da escuta de uma curiosa (digamos assim) conversa no trem. A impressão, no todo, é a de que o livro configura um retrato agudo das tendências sócio-políticas e culturais brasileiras mais à vista de observadores urbanos críticos a certos traços da sociedade brasileira, como Gonzaga de Sá e como o próprio Lima. Aliás, digno de nota também, como já observado em outras leituras da obra de Lima, é o fato de M. J. Gonzaga de Sá ser uma espécie de heterônimo de Lima e o fato de ambos terem se aproximado, inclusive, na maneira pela qual enfrentaram a morte, ou seja, de forma repentina, discreta, sem grande estardalhaço. As palavras do biógrafo de Gonzaga de Sá dão o tom: “Para se compreender bem um homem não se procure saber como oficialmente viveu. É saber como ele morreu; como ele teve o doce prazer de abraçar a Morte e como Ela o abraçou” (p. 612).

Capa da primeira edição do romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), disponível em https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4800. Acesso 03/11/2020.

Capa da primeira edição do romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), disponível em https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4800. Acesso 03/11/2020.

Também digno de nota é o fato de que Numa e a Ninfa, antes de virar romance, foi publicado em versão de conto, alguns anos antes, o que também aconteceu com Clara dos Anjos (do qual falaremos em texto futuro). Enquanto conto, o barato é outro. É um texto bem urdido, as pontas todas amarradas, econômico na medida. Enfim, o texto de Lima tem lá as suas manhas e particularidades, há que se saber lê-lo, percorrer as suas descrições, contornar as suas nuances, pois ele se sabe envolvente à sua maneira, envolvente como, aliás, deve ser um bom samba. Olha o breque!

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BARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. In.: BARRETO, Lima. Obra Reunida: vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

BARRETO, Lima. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. In.: BARRETO, Lima. Obra Reunida: vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Cia das Letras, 2017. 

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Adriano de Souza, no mundo, é só mais um. Em seu país, não é mais do que ninguém. No Rio Grande do Sul, nasce a cada mês de julho. A Santa Maria volta sempre que precisa se reencontrar. 

Em Camobi, amarelou seus verdes anos. Em Bagé faz análise. Em casa, pelas cordas do violão, vai tocando a vida, às vezes desafina, outras não.

 

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