Ano 06 nº 004/2018 – Um retrospecto do passado que reflete na atualidade: Queimem as bruxas!
Um acontecimento específico, no entanto, não isolado fez com que algumas reflexões me viessem à cabeça. No dia 7-11-2017, a autora Judith Butler filósofa e autora de teorias que tratam da questão contemporânea do feminismo, filosofias políticas, éticas e teoria queer palestrou do Sesc em São Paulo.
A palestra foi alvo de uma manifestação conservadora em frente à instituição onde o evento ocorria, a autora foi acusada de promover a ‘’ideologia de gênero’’. Anterior a sua vinda uma petição online foi criada para que a estadia da filósofa no Brasil fosse negada com o argumento de que a maioria da população brasileira não aceitaria a sua presença por conta de seus escritos ferirem ‘’valores’’ da população – valores tradicionais/religiosos-.
Mas o que realmente fez com que reflexões me viessem à mente foi o teor da manifestação, os conservadores e defensores da família tradicional brasileira confeccionaram uma boneca em tamanho real com o rosto da filósofa e o queimaram, enquanto o faziam gritos ecoavam ‘’QUEIMEM A BRUXA’’. Um ato simbólico que reflete muito o passado sob nossas linhas oculares.
O ódio às mulheres, o ódio à liberdade feminina. Esta é uma das questões que a própria filósofa coloca em seu livro ‘’Problemas de Gênero’’ onde ela diz que o ataque ao gênero emerge do medo a respeito das mudanças na família, no papel da mulher, na questão do aborto, direitos LGBTs e casamento homoafetivo.
Esse ato vergonhoso me lembrou de uma leitura que fiz a um tempo atrás sobre a Inquisição das Bruxas, que ocorreu em meados do final do séc 14 ao séc 18, onde mulheres que não seguiam o catolicismo ou simplesmente não seguiam os padrões tradicionais impostos às mulheres eram torturadas, enforcadas ou queimadas vivas em fogueiras em praças públicas. A leitura que fiz foi do livro ‘’O Martelo das Bruxas’’ escrito por monges dominicanos que foi utilizado basicamente como manual para identificar e eliminar ‘’bruxas’’. No capítulo em que se justifica o porquê a bruxaria se encontra antes de tudo nas mulheres os monges utilizam doutrinas religiosas de seitas cristãs para ilustrar a ‘’maldade’’ das mulheres:
“Não há cabeça superior à de uma serpente, e não há ira superior à de uma mulher. Prefiro viver com um leão e um dragão, que com uma mulher malévola”. E entre muitas outras coisas que nesse ponto precedem e seguem ao tema da mulher maligna, concluímos: Todas as malignidades são pouca coisa em comparação com a de uma mulher. Pelo qual São João Crisóstomo diz em texto: “Não convém se casar”. São Mateus, XIX: Que outra coisa é uma mulher, senão um inimigo da amizade, um castigo inevitável, um mal necessário, uma tentação natural, uma calamidade desejável, um perigo doméstico, um deleitável detrimento, um mal da natureza pintado com alegres cores! Portanto, se é um pecado divorciar-se dela quando deveria mantê-la, é na verdade uma tortura necessária. Pois ou bem cometemos adultério ao nos divorciar, ou devemos suportar uma luta quotidiana. Em seu segundo livro, A Retórica, Cícero diz: “Os muitos apetites dos homens levam-no a um pecado, mas o único apetite das mulheres as conduz a todos os pecados, pois a raiz de todos os vícios femininos é a avareza”. E Séneca diz em suas Tragédias: “Uma mulher ama ou odeia; não há uma terceira alternativa. E as lágrimas de uma mulher é um engano, pois podem brotar de uma pena verdadeira, ou ser uma armadilha. Quando uma mulher pensa sozinha, pensa o mal. Portanto, uma mulher malvada é por natureza mais rápida em vacilar em sua fé e, portanto, mais rápida em abjurar da fé, o que constitui a raiz da bruxaria.”
[…]
‘’Quer dizer que uma mulher é formosa na aparência, contamina pelo tato e é mortífero viver com ela. Consideremos outra de suas propriedades, sua voz. Pois como é embusteira por natureza, assim também em sua fala fere enquanto nos deleita. Pelo qual sua voz é como o canto das sereias, que com suas doces melodias atraem aos viajantes e os matam. Pois os matam esvaziando-lhes os bolsos, consumindo-lhes as forças, e fazendo-os abandonar a Deus. E Valerlo também diz a Rufino: “Quando fala, é um deleite que aroma o pecado; a flor do amor é uma rosa, pois embaixo de seu botão se escondem muitos espinhos”
Estes são escritos do século 14, mas que ilustra de forma assustadora o pensamento do conservadorismo atual. Os nossos corpos, vozes, formas de expressão são sentenciadas a caixas comportamentais, mulheres colocadas como servas dos maridos e rebaixadas ao seu ‘’dever divino’’ da reprodução, corpos a serviço do prazer masculino, questão de propriedade e não de ser. Esse discurso pode ser dos séculos passados, mas que ainda são defendidos por segmentos da sociedade que refletem em um país que mais mata mulheres, ainda vivemos em um país em que a representatividade da mulher na política é mínima e que por consequência as decisões que dizem respeito ao nosso corpo são decididas por homens.
Manifestações como esta me chocam, pois é o retrato claro da violência que nós mulheres sofremos cotidianamente, a nossa liberdade é vista como pecaminosa, suja, libidinosa. Podemos não estar no século 14, a inquisição não existe mais, não nos queimam como bruxas em fogueiras, mas o cotidiano de vivência não nos mostra um quadro diferente. Nós somos as bruxas que não foram queimadas na inquisição, mas que ainda – séculos depois – sofrem todas as violências.
Aqui vai o link para quem quiser ler o livro citado:
Acesso em: <http://www.mkmouse.com.br/…/malleusmaleficarum-portugues.pdf>
*Imagem meramente ilustrativa.