Ano 07 nº 025/2019 – Sobre o discurso, a falácia do espantalho e a total incapacidade de ouvir o outro
Por Matheus Santos
Quando estudamos as teorias linguísticas e discursivas, percebemos que a maneira como a comunicação ocorre é, no mínimo, peculiar, uma vez que, entre o locutor e o interlocutor, existe o discurso [1], que pressupõe peculiaridades as quais dizem respeito à posição-sujeito dos falantes, suas ideologias, o contexto, etc.
Dessa relação surge a interpretação que, como se bem sabe, jamais é unilateral, unívoca. Isto é, quando “A” diz “y”, é possível que “B” entenda “x”. E não poderia ser diferente, afinal, somos sujeitos distintos, com perspectivas distintas sobre o mundo e as coisas que o compõe.
Nos tempos atuais, o que acontece, entretanto, é que a rede social instaurou um fenômeno bastante complicado – para não dizer doentio – dentro de nossa cultura: o ponto de vista absoluto, adotado por um sujeito que lê os sentidos e o mundo, estritamente, a partir de seu lugar, ignorando toda a complexibilidade que envolve o momento enunciativo, incluindo, evidentemente, o outro.
Nesta visão, este ponto de vista absoluto trata, quase que de maneira automática, de uma interpretação extremamente individual acerca de algo. Logo, se anteriormente sempre fora criticada a máxima do “sou responsável pelo que falo, não por aquilo que as pessoas interpretam”, atualmente, as mesmas pessoas que reclamavam desse tipo de dizer, invertem a regra e utilizam-se de algo que soaria, como, “és responsável pelo que interpreto, não por aquilo que tentastes dizer”.
Por meio de tal lógica, o interlocutor ignora os efeitos de sentido (sic) os quais fundamentalmente constituem um discurso, procurando, assim, sobrepor o seu interpretar sobre aquilo que o locutor está dizendo. Portanto, se João disse “y” e o interlocutor entendeu “x”, automaticamente, a partir deste momento, João passou a dizer “x”, devido, somente, ao fato de que foi assim que o locutor teve seu gesto interpretativo.
É neste ponto em que alguns dos preceitos básicos comunicativos que tratamos até aqui, deslocam-se e passam a atuar em conjunto, de forma danosa, com uma parte muito singular estudada dentro das teorias da argumentação: a falácia do espantalho [2].
Entende-se por falácia do espantalho, uma prática argumentativa em que há o segmento de parte de um discurso – ignorando contexto, ideologia, etc –, sua distorção e, em seguida, sua refutação pública. Ou seja, não há debate acerca do argumento inicial e verdadeiro, mas sim o linchamento e inúmeros ataques contra um espectro irreal e falaz de uma fala moldada à sua perspectiva e vontade.
Como é possível de percebermos, isso resulta de uma cultura em que tem-se pressa por estar certo. Em que a comunicação fica cada vez mais de lado, pois não se procura compreender aquilo que se está sendo dito, quer-se, sim, agir a partir da ânsia de expor o diferente. De refutar e calar vozes outras.
Que fique claro, ainda, que não me refiro a possíveis interpretações de discursos que estão dentro do âmbito do racismo, do preconceito, etc. Afinal, estas são temáticas definitivas. E assim devem ser tratadas. Não podem e tampouco devem passar. Não há debate quanto a isso.
Refiro-me, sim, à ânsia pela exposição alheia gratuita. Pelo lacrar por lacrar. Por aquilo que eu definira enquanto, “se eu discordo > o outro está errado > e se ele está errado > vou expô-lo”. Simplesmente assim, como se errar fosse algo definitivo e transparente. E não o é.
O que quero dizer com tudo isso? é que talvez refletir sobre as nossas práticas e discursos esteja indissociavelmente ligado ao refletir acerca dos discursos e das práticas dos outros. E bom, que talvez sempre procurarmos problemas no discurso ao lado, seja também um problema do nosso discurso.
Enfim, para não me alongar ainda mais nesta que deveria ser uma breve reflexão, gostaria de dizer apenas que, creio, não ser viável vivermos tempos em que as pessoas, no geral, são tão apontadoras de dedos umas para as outras, independendo da proximidade que elas possuem. Uma sociedade doente é uma sociedade silenciada, com medo de se expressar. E isso não se pode ter.
Sobre o discurso, a falácia do espantalho e a total incapacidade de se comunicar, só uma é a certeza: se não paramos para ouvir o outro, ninguém jamais parará para nos ouvir. Não aquilo que realmente estamos tentando dizer, ao menos.
Fontes:
[1] PÊCHEUX M. (1975). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 2009.
[2] https://amenteemaravilhosa.com.br/falacia-do-espantalho/