Ano 09 nº 072/2021 – SÓ UMA ÁRVORE NA CALÇADA
Por Leandro de Araújo
Ela não tinha nada demais. Não era rara, ou frondosa. Quase não dava sombra. Suas folhas tinham um verde desbotado e florava apenas uma vez por ano. Flores pequenas, quase imperceptíveis e sem perfume algum. Mas estava ali, na calçada da grande metrópole. Próxima ao meio-fio daquela avenida movimentada e em frente a uma grande livraria, de onde diariamente entravam e saíam centenas de pessoas que jamais olhavam para Ela.
A árvore estava em um quadrado de terra aberto na calçada justamente para que ali se plantasse uma árvore. Alguém, em algum momento, mandado por outra pessoa, a trouxe e plantou ali. Não se sabe ao certo se o objetivo era deixar a cidade mais bonita, supostamente mais natural ou simplesmente porque as cidades costumam ter algumas árvores nas calçadas. Ela mesma sequer tinha consciência de sua existência. Pelo menos até aquele dia.
Quando o amanhecer começou a iluminar a avenida, procurando espaço por entre os prédios em um ensolarado dia de primavera, Ela se tornou consciente pela primeira vez. A primeira sensação que experimentou foi de susto, quando um ônibus passou à toda velocidade, agitando seus finos galhos e fazendo um barulho medonho. Como se tivesse despertado de um pesadelo, Ela gritou. Porém, por mais que se esforçasse em gritar, parece que ninguém ouvia sua voz. Ficou por muito tempo gritando em todas as direções, mas as pessoas sequer faziam menção de que estavam ouvindo, ou se importavam. Era como se Ela nem estivesse ali.
Cansada de tanto pedir por socorro sem resposta, respirou fundo e decidiu que a ideia mais inteligente seria sair do lugar e tentar descobrir onde estava. Fez muita força na tentativa de escapar do quadrado de terra, mas raízes fortes e profundas a prendiam ao solo de tal maneira, que nenhum esforço que fizesse era capaz de libertá-la.
Desesperada, procurou acenar, pediu por favor, chorou. Ninguém notava que Ela estava ali. Nada.
Ela, a árvore, então sentiu-se sozinha, numa solidão tão profunda e dolorosa. Queria voltar a ser tudo como era antes, quando apenas existia. Sem consciência ou dúvida. Tal e qual a placa com o nome da livraria, que só estava ali porque precisava estar. Ou o asfalto da avenida.
Tentou chorar, mas não conseguiu. Apenas caíram algumas poucas folhas amareladas, algumas no quadrado de terra, outras levadas pelo vento caíram na calçada. Seriam varridas, colocadas em sacos e jogadas na lixeira. Nem para adubar outra árvore serviriam.
Queria saber de quem eram as mãos que abriram a terra e a plantaram ali. Quem regava suas raízes? A quem sua sombra diminuta poderia abrigar em um dia de sol escaldante? Qual o sentido de uma existência que passa despercebida por todos? Por quê?
Como seus gritos, suas perguntas parecem ter caído no vácuo. Pessoas passavam apressadas. Sérias, olhando seus smartphones. Algumas em grupos, sorriem e falam alto. Alguns casais de mãos dadas. Crianças correndo. No outro lado, carros e ônibus disputam espaço, buzinam, correm.
A tardinha ia chegando e o sol já espiava por entre as frestas dos prédios no outro lado da avenida. Ela melancolicamente aguardava a noite chegar, na esperança de que, no outro dia, voltasse a ser apenas mais uma coisa compondo a paisagem urbana da cidade grande. Como uma placa ou o asfalto. Apenas existindo.
Então, quando a tristeza e o vazio pareciam consumi-la e a dor era maior que a própria vontade de existir, um pequeno pássaro pousa de forma estabanada em um dos finos e tortos galhos que apontavam para o céu. Pulou um pouco de um lado para outro, espiou em todas as direções e, quando sentiu-se seguro, abrigou-se em meio às parcas folhas, de maneira que pudesse ficar oculto de olhares curiosos ou predadores. Logo em seguida, duas borboletas pequeninas pousaram em uma folha, deram algumas voltas ao seu redor como em uma dança, até se encontrarem e se enlaçarem em um ritual onde havia perpetuação e amor. Do quadrado de terra onde estava plantada, emergiu a larva de uma cigarra que subiu por seu tronco até uma altura confortável, de onde o inseto pode libertar-se, esticar suas asas e voar para poder em breve acordar o dia com sua cantiga.
Caiu a noite e Ela em um silêncio cortado por suspiros que ninguém ouvia e lágrimas que ninguém notava. Uma existência composta de pequenas flores sem perfume, algumas folhas de um verde desmaiado e um quadrado de terra aberto em uma calçada da metrópole.
Na compreensão de sua existência, a esperança no entardecer do próximo dia. A consciência de que mesmo na simplicidade de seu existir há força suficiente para oferecer abrigo, amor e vida. A quem quer que precise deles. Quando Ela se dá conta disto, se as pessoas parassem para olhá-la pelo menos uma vez, certamente iriam perceber que, junto da lágrima, agora também havia um sorriso.
(Foto: acervo pessoal)
Leandro de Araújo, acadêmico de Letras Língua Portuguesa da UNIPAMPA, Polo de Esteio/UAB. Atuo há vinte anos como profissional de Tecnologias Educacionais. Apaixonado por escrever, sou o autor do blog https://blogdoleandroaraujo.blogspot.com/ e tenho um livro publicado pela Amazon chamado “A menina que podia voar e outros contos”. Sou um dos responsáveis pelo Projeto Aquecimento Cênico, que há 14 anos trabalha expressividade corporal e facial, inteligência emocional e relações interpessoais com equipes.