Ano 10 nº 001/2022 – Réquiem para um amigo morto

Por Eduarda Manzke

Henrique, com 17 anos, subindo a rua pela calçada cinza e suja, reclamando do calor, levantando a regata verde até a cabeça, cobrindo o rosto vermelho. Eu segurava seu braço, guiando ele pela rua vazia, quase etérea do domingo de tarde, os prédios antigos com mais de duzentos anos, transformados em comércios onde o choque entre a arquitetura velha e as placas de plástico ou MDF pareciam influenciar a nossa própria existência, eu ria dele sem entender, porque a praça verde, duas quadras acima, mas que parecia ficar a quilômetros de distância, porque subíamos no calor e nunca chegávamos a lugar nenhum, e ele reclamava. Eu resignada, ouvia e não concordava nem discordava. 

Henrique, tão ofegante que o ar frio do inverno que saia de sua boca se condensava no ar como se ele estivesse cuspindo fumaça, não conseguia parar de rir, e eu estabacada no chão, olhando pra cima pro céu azul sem uma nuvenzinha, meu nariz doendo de frio, rindo, mas sem saber se ria ou se chorava, o professor de educação física chamando pelo meu nome, perguntando se eu estava bem, eu estava: nada nem doía, apesar da força da torção no tornozelo, era mais o choque, a risada de Henrique, e eu toda molhada do sereno que ensopava o gramado, os outros alunos sem saber se seguiam correndo ou se paravam, já que eu não me levantava, o Henrique estendeu a mão e eu peguei em sua mão coberta pela luva (e o que ele fazia usando luva no meio da educação física?), ele me levantou e me ajudou a me equilibrar, limpou meus ombros cobertos por grama e umidade, como quem tirava pó dos ombros de um casaco. Eu senti a dor no tornozelo quando apoiei o pé no chão, insuportável, (estava quebrado, mas eu não ia descobrir até bem mais tarde, quando a ambulância já tinha me levado pro pronto socorro, e minha mãe desesperada já tinha entrado porta adentro correndo), e falei pro professor: não consigo andar. Aquele homem alto, com um bigode preto parecendo mais uma lacraia, contrariado, mas preocupado, mandou Henrique me apoiar e me levar para sala da Márcia, e o Henrique, apoiando um de meus braços em seu ombro, foi comigo pulando, atravessando o longo campo até a escola. Eu reclamava, como que deixavam esse professor mandar a gente correr o campo todo no frio, que nem a gente tivesse no exército, porra, em pleno julho. E o Henrique me arrastando pelo campo e rindo “marcha soldado, cabeça de papel, quem não marchar direito vai direto pro hospital”. Ele tinha 13 anos. 

Henrique segurou minha mão durante todas as quatro horas que fiquei na delegacia. Ele não soltou nem quando a delegada apontou o dedo para ele e perguntou se ele era responsável por aquilo. E nós tínhamos 15 anos. E eu soluçava baixinho tentando dizer a delegada que ele era meu amigo, mas ainda havia sangue seco nas minhas coxas, congelado a meio caminho de pingar, e Henrique insistia: foi o ex dela. Olha aqui, meu amigo, eu preciso ouvir ela, disse a delegada, até onde eu sei você pode tá inventando essa história, e aí, menina? E eu sussurrei: foi meu ex, não foi ele. E Henrique segurou mais forte a minha mão enquanto o cheiro de papel e naftalina enchia minhas narinas e eu me forçava a olhar acima das coxas. O olhar angustiado de Henrique parecia me pedir desculpas por algo que ele sequer havia feito, como se pedisse desculpas por ter me deixado sozinha com ele, mesmo quando eu lhe pedi que o fizesse, e se uma parte de mim queria ter raiva dele por isso, a outra gritava incessantemente que era minha culpa. E nenhuma estava certa. Henrique só largou minha mão quando meus pais chegaram. 

Henrique mostrou para mim o teste de gravidez positivo. Sentados no chão, um em cada lado da porta, nós ouvíamos Cecília chorando dentro do banheiro. Você só tem 16 anos, eu queria dizer, mas não disse porque ele já sabia muito bem disso. Minha mãe vai me matar, ele dizia, meu pai vai me botar pra fora. E o choro ficava mais forte. O que vocês vão fazer? Eu perguntei, e Henrique balançou a cabeça. E ele balançou a rindo. Vou ser pai, vou ser pai. Você consegue entender isso? E eu sabia que o mais difícil ia ser ter que explicar para Cecília que Henrique não estava apaixonado por ela e que os dois não iam durar nem metade do tempo da gravidez juntos. A menina com os olhinhos inchados de chorar e o lábio tremendo enquanto ele dizia que ia fazer a coisa certa. Que coisa certa, Henrique, contar pro meu pai que tu fez um filho em mim? Eu estava sentada no canto da sala com um copo de suco na mão querendo chorar, mas também achando graça daquela coisa toda. 

E então, Henrique a dois meses de fazer 17 anos se mudou para casa de sua tia Martinha, porque o pai tinha de fato o expulsado de casa, e eu ajudei a fazer a mudança dele carregando as caixas com cadernos velhos, roupas que nem serviam mais nele, brinquedos velhos, revistinhas em quadrinhos, coisas de criança, porque no fundo era isso que nós éramos: crianças. Mas Henrique ia ser pai. Na caçamba da caminhonete ele me disse: eu posso até ser pai aos 16, mas nunca na vida vou ser igual ao meu pai. E eu queria me sentir mal por ele, mas no fundo só pensava na pílula do dia seguinte e no coquetel contra ISTs que me deram no postinho de saúde enquanto uma enfermeira limpava o sangue das minhas pernas e me dizia que aquilo era só por precaução, para que o pior não acontecesse comigo. E naquele dia decidi nunca ter filhos. 

Fui eu que levei Henrique até a maternidade, um mês depois dele fazer 17 anos, para conhecer seu filho porque ele tinha medo de como ia reagir. Eu o peguei pelo braço e pedi que ele fechasse os olhos. Caminhamos juntos pelo corredor bege onde se ouvia passos leves e choros baixinhos de neném, e eu o levei até a incubadora onde o recém-nascido estava deitado envolto em panos azuis e brancos. Deu, pode abrir. Henrique

abriu os olhos e os dois se encararam por um segundo (era a cara um do outro, diriam depois). Segurando o menino no colo, os olhos de Henrique brilhavam com as lágrimas. E os meus também. E sussurrando baixinho ele dizia: meu filho. Miguel, meu filho

Era o aniversário de 18 anos de Henrique, e eu tive que pegar o carro dos meus pais e buscá-lo do outro lado da cidade. E chovia. Ele tinha saído com aquele bando de amigos dele que o largavam na frente de um bar sem dinheiro para pagar a conta, e naquela hora ele se lembrava de mim porque era sempre eu quem deveria resolver os problemas dele, e buscar o filho quando ele não podia, e tentar fazer as pazes com Cecília. E eu não sou sua mãe, gritei no carro no caminho de volta, o silêncio pesando entre os bancos de tecidos, quentes, e o cheiro de aromatizante de pinho, e o rádio tocando a Voz do Brasil que ninguém desligou. Então vai se foder, ele gritou de volta, e eu parei o carro e mandei que ele saísse. 

Quando Miguel fez 3 anos, Henrique havia acabado de fazer 20. A gente não quis fazer festa de um aninho, porque ele não ia se lembrar mesmo, disse Cecília, quando me convidou por educação. E quando eu fui por educação, levei também um presente por educação, que não havia muito tempo. E vi Henrique de pé em um canto, deslocado, segurando um copo de plástico na mão, fingindo que aproveitava a festa paga pela família dela, planejada por ela, feita para o filho, em que ele não havia participado de nada. E mais por resignação do que por educação, me aproximei dele e quis pedir desculpas, mas não fiz, e ele não me perdoou. 

E então, um dia temos 24 anos e nos encontramos no mercado. Meu carrinho bate no dele, estamos na seção de congelados. Henrique tem um saco de batatas fritas congeladas na mão. Oi, eu disse. Oi, disse ele. Dissemos uma coisa, dissemos outra. O sorvete derretia no meu carrinho. A gente devia se ver mais. A gente marca alguma coisa qualquer dia desses. Promete? Claro. 

Henrique tinha 11 anos quando o conheci. Éramos colegas de turma. Fevereiro, terceiro dia de aula, dois períodos de história. Só que o professor de história havia faltado e nos enfiaram no pátio de brita escura, com o estagiário de educação física. Posso ser sua dupla? Henrique me perguntou, enquanto os outros se juntavam para a corrida de mãos dadas organizada preguiçosamente. E eu disse que ele podia. E fomos pra casa juntos no fim da tarde, porque morávamos no mesmo bairro e no outro dia fomos juntos para escola e voltamos juntos, e fizemos nossos trabalhos juntos, e rimos juntos e ele foi comigo na ambulância quando quebrei meu tornozelo, e nós fomos juntos contar aos pais dele que Henrique ia ser pai, e eu quase apanhei junto porque pensaram que eu fosse a mãe, e eu dei a ele o maior sermão do mundo, e ele me pediu que convencesse Cecília a aceitar bem o término, pelo amor do filho na barriga dela, e eu cansei de consertar seus erros, e Henrique cansou de tentar me dar conselhos do que fazer com minha vida porque eu não tinha mais idade pra ter medo de me aproximar de outros homens, porque já havia se passado tempo demais, e eu gritei com ele. E devíamos ter pedido desculpas, mas não fizemos.

A conexão estava ruim no dia que ele me ligou. Na tela retangular, o rosto de Henrique era uma mancha granular de cores em um fundo bege. Não, eu não acho que vai durar muito tempo, ele disse. Umas duas semanas? Lá onde eu to trabalhando, nos deram só uma semana em casa. E como vai o Miguel?, eu quis saber. Henrique não o via há mais de um mês. E eu tentei argumentar que Cecília não tinha o direito de manter o menino longe dele, ele já tinha idade o suficiente pra sentir falta do pai. Mas Henrique deu de ombros na sua complexão triste de sempre. De sempre? Quando foi que tristeza virou o padrão das nossas expressões? Naquela noite eu me sentei no chão vazio do meu apartamento e chorei tanto que as lágrimas daquela noite na delegacia pareciam insignificantes. 

Quando Henrique fez 25 anos, eu me vesti de álcool em gel, máscara N95 e vinho para encontrá-lo em seu apartamento no centro. Quem diria que uma pandemia ia acabar aproximando a gente de novo né? Ele pergunta, bochechas vermelhas e sorriso no rosto. Eu tenho vivido há tanto tempo sozinho que às vezes eu queria ter te ouvido quando tu me avisou que eu iria morrer sozinho. Eu tentei argumentar que ele jamais poderia estar sozinho enquanto eu ainda fosse viva, porque nós dois tínhamos uma dívida de morte um com o outro. O que significa ter um amigo senão ter alguém que morreria por você a qualquer hora do dia? O que significa ter um amigo senão ter alguém que ainda suporte todos os seus defeitos mesmo depois que você tenha dito as piores coisas do mundo? 

Quando uma tragédia acontece de uma vez só, as pessoas não esquecem. O que você estava fazendo no dia 11 de setembro de 2001? Alguém poderia responder “eu estava vendo o jornal quando o avião bateu na segunda torre”. As pessoas se lembram, porque foi como se todo mundo perdesse um pouco naquele dia. Mas quando mais de duas mil pessoas morreram, uma em cada canto do país, no dia 15 de março de 2021, onde você estava? Eu estava enterrando Henrique. Que morreu sozinho apesar das minhas promessas. Cujo rosto eu não consegui ver e cujo velório não tinha 12 pessoas. Cujo filho talvez não guarde nada do pai além da memória de um sorriso cansado. 

E quando eu sai do velório aquela tarde o mundo seguia mesmo. Ainda havia vendedores de rua na parada do ônibus, as lojas ainda estavam abertas, um cachorro dormia preguiçosamente no canteiro de flores. Eu me sentia a vítima de uma tragédia que não teria platéia, não teria matéria no jornal, e nem memorial. Hoje em dia me parece que a gente internalizou esse sentimento devastador de perda ao ponto que “sofrer sozinho” virou redundância. E eu queria sentir aquela dor com o mundo todo. Eu queria poder contar pra senhora que espera o ônibus ao meu lado que Henrique vai me fazer tanta falta que me dói para respirar só de pensar. Eu queria torná-lo conhecimento público. Eu queria poder ter a certeza de que vou poder fazer justiça à memória de um amigo que fez questão de segurar minha mão no meu momento mais difícil, mas não posso. 

O melhor que posso fazer é ter esperança. E me lembrar.

Eduarda Manzke: Natural de Bagé, RS. Acadêmica do curso de Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa. Formada em técnico em informática pelo IFSul campus Bagé. Vencedora do II Concurso Literário Pet-Letras Bagé

“Esta é a coluna do PET-Letras, Programa de Educação Tutorial do curso de Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa, do campus Bagé. O programa, financiado pelo FNDE/MEC, visa fornecer aos seus bolsistas uma formação ampla que contemple não apenas uma formação acadêmica qualificada como também uma formação cidadã no sentido de formar sujeitos responsáveis por seu papel social na transformação da realidade nacional. Com essa filosofia é que o PET desenvolve projetos e ações nos eixos de pesquisa, ensino e extensão. Nessa coluna, você lerá textos produzidos pelos petianos que registram suas reflexões acerca de temas gerados e debatidos a partir das ações desenvolvidas pelo grupo. Esperamos que apreciem nossa coluna. Boa leitura”.

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