Racismo, coisa de branco
Por Henrico dos Santos Iturriet
Primeiramente, acho importante me caracterizar no início deste texto para me propor à exposição. Me chamo Henrico Iturriet, sou um negro de pele clara (ou o que alguns chamam de pardo), que experienciou um ambiente de elite por ser permitido (veja, tive que pedir licença) pela branquitude a não assumir meus traços e minha ancestralidade, ou melhor, nada do que viesse de mim pela minha cor.
Saliento uma coisa, antes que polêmicas surjam e tudo o que escrevo seja descontextualizado como aconteceu nos últimos tempos: não sofro a mesma coisa que uma pessoa com traços mais marcados e nem como pessoas com a pele mais escura! Não tomo essa posição e nunca determinei essa construção para mim mesmo, muitas pessoas negras colocam a responsabilidade a mim do letramento racial sobre colorismo, e é sim importante, antes mesmo de saber se eu já o tenha ou não. O Colorismo, além de uma política de embranquecimento do Estado, é um aviso: pessoas indiscutivelmente pretas sofrem mais do que pessoas com caráter ambíguo. Elas não podem pedir licença, e disso eu tenho consciência.
Audre Lorde, militante estadunidense, mulher negra, lésbica e filha de caribenhos, escreveu em A transformação do Silêncio em linguagem e ação que o silenciamento sobre a questão do “grande assunto” que nunca é tocado é desconfortante tanto para pessoas brancas quanto para pessoas negras. Isto é, falar sobre racismo é dolorido para os negros, e falar sobre racismo para os brancos é “constrangedor”. Lembrar da pele é sempre delegar uma parte do preconceito para si mesmo, atuar numa instância que envergonha e relembra uma história, às vezes de culpa, de inadimplência, de silenciamento…
É justamente nesse texto que Lorde expõe o que eu gostaria de fazer com essa escrita: determinar uma posição social sem vergonha daquilo que muitos iriam esquecer. A negritude, nesse sentido, é uma ampla camada de ancestralidade e silêncios que nos foram retirados, principalmente dos nossos ancestrais. Meu passado escravizado e minha etnicidade apagada por um genocídio e etnocídio ingígena me prende ao presente a aos traços da identificação das situações de dor e de acolhimento que me rodeiam. Eu não tive escolha, assim como toda pessoa negra, de estar nessa posição dependendo do lugar onde estou. Sou lido como branco em alguns lugares sim, não há dúvida disso, mas eu sempre me pergunto o motivo dessa leitura.
Clóvis Moura escreve em Uma dialética do Brasil negro que a consciência racial, ou seja, de ser uma pessoa racializada pela estrutura social ou pelos grupos que se convive, acontece num momento de conflito. Esse “conflito” é manifesto como uma humilhação, um lembrete, de origem sempre branca: “Eu sou melhor do que você, eu possuo um espaço maior do que o seu, o lugar que tu ocupa eu nunca irei ocupar”. Implicitamente, é isso que eles dizem quando nos chamam de macaco, sarará, marrom bombom, desbotado… E há um debate emergente sobre quem é negro na esfera social brasileira, fomos de uma pergunta problemática que era “O problema do negro no Brasil” para “Quem é negro no Brasil?”. Pergunta viável e necessária para pensar essa nova fase do pensamento social e das nossas vivências.
Essa pergunta surge com uma utilidade, afinal, as políticas afirmativas foram aprovadas, as cotas sociais e raciais começam a serem adotadas pelas universidades federais, empresas, enfim, a sociedade civil. Proporcionalmente, há um aumento de casos de pessoas autodeclaradas pardas no país. Uma nova pergunta surge: seria isso afroconveniência (utilizar das pautas raciais e de identidade para obter espaço, ou usar uma causa a benefício próprio) ou um resgate da história geral proporcionada por uma nova visão racial no Brasil?
Tenho um dado, no livro Pigmentocracias: etnicidades, raça e cor na América Latina, as pesquisas mostram que nos últimos 10 anos, que os casos de autodeclaração (definida pelo indivíduo) e heteroidentificação (definida pelo outro) batem, nos casos brasileiros, num percentual de 80%. Ou seja, a maioria que se diz negra no Brasil é lida como negra. Há uma polêmica escondida aí: quem pode dizer ou determinar o negro no Brasil?
As pesquisas sociológicas relembram que raça é uma construção social, então, ao invés de simples fatores individuais, as nossas consequências são medidas por aparatos metodológicos e sistematizados para determinar quem é ou não negro. Uma das coisas que contesta o dado anterior, é que as pessoas negras claras, por terem traços ambíguos, acabam por ter uma certa espacialidade na sua raça, ou seja, dependendo do lugar que ocupa, da classe social, dos hábitos e costumes, da forma que se fala, e das coisas que se consome, a percepção e leitura social muda. Então, a raça tem vários lados quando se pensa na identificação. No entanto, pesquisas de livros como “Discriminação e desigualdades raciais no Brasil” de Carlos Hasenbalg demonstram algo que o livro anterior também afirma: a renda básica, a condição de classe, o nível da renda per capta familiar, o nível de escolaridade, as relações de cabelo liso ou não, todos esses indicativos são complementares, historicamente falando, para considerarmos a pessoa preta e parda num grupo social e político determinado chamado “negro”. Isso significa que, independente das modelações de ambiente e de leitura social, uma coisa permanece fixa: a classe associada às pessoas negras no Brasil é uma instância ainda fixa (o caso das cotas deu uma pequena remodelada nesse dado). Então, o que varia seria o caráter simbólico da raça.
Escrevo isso tudo por um motivo: ser negro no Brasil não é uma resposta binária conhecida do modelo estadunidense. Aliás, é por isso que a mobilização negra no Brasil é tão difícil. Mas aqui, volto para um caso pessoal que demarca bem essa ambiguidade.
No meu primeiro dia de trabalho, me chamaram de “negro-branco”, remetendo a uma miscigenação, a um traço escondido e aparente dos meus ancestrais e do meu presente. Logo após eu reivindicar um traço da minha negritude e trançar o meu cabelo como símbolo de resistência, escuto no outro dia no mesmo ambiente “Agora sim, tá com carinha de bandido!”. A pessoa que fez esses comentários é branca, assim como outra branca naquele mesmo ambiente me diz “Sabe, os meus antepassados eram escravos também”. Já um dos homens negros chega em mim e diz “Adorei tuas tranças”. Isso é um caso isolado, mas muito simbólico. Enquanto eu caminhava pela cidade, escutava de famílias brancas sentadas em frente as casas “esses neguinhos acham que tão estiloso agora”. Ou “Negão, me dá uma licença que eu tô tentando passar”. Veja, são duas experiências, que também suportam duas interpretações.
Se eu tirasse as tranças e não me orgulhasse delas, estaria tentando passar por “mais branco”, me embranquecendo. Ou seja, eu poderia voltar para o lugar de “meio-branco” que a branquitude no geral deixa passar. Daqui, vem uma polêmica: o negro escuro não pode fazer isso, ele está sempre na posição de ser atacado. Eu não vivo isso, só que isso não tira o respaldo do ataque que direcionam a mim quando este é o de reivindicação da minha negritude: é o branco que nos ataca recorrentemente. Quando uma pessoa preta escura me chama de branco, quase como um ressentimento social marcado por não ter essa mesma experiência, isso marca uma contradição interna na gente. Eu realmente não tenho poder sobre isso, não tenho como delimitar quem será mais afetado, mesmo que a resposta seja explicitamente o mais escuro, mas não é por isso que o branco não me ataca também. Essa indecisão, esse contrariamente, é uma dor, é uma falta de identificação, é um “e agora?”. Um irmão ou uma irmã me chamar de branco é o que mais dói, mas quando um branco faz isso, é quase como se me dissesse “agora eu te considero
branco, se passar mais um tempinho, ou talvez eu me sinta ameaçado, não posso dizer se tu continuará sendo branco para mim”.
Vejam, aquele conceito de passabilidade não delimita um privilégio e sim um benefício, que pode muito bem ser cortado, como uma política de estado neoliberal. Irmãos e irmãs negros, penso que essa nova separação não resulta em nada na luta política, afroconveniência seria eu lutar para ter ainda mais espaço do que as pessoas da nossa comunidade mais escura, nós já somos a maioria atacada no Brasil, nós não podemos pegar a pistola da polícia e apontar para o irmão do lado recerceando uma coisa que deve ser cobrada por outro grupo social. O racismo, é coisa de branco, foi ele, é sempre ele.
Henrico dos Santos Iturriet, ciências sociais, literatura, cinema… Bacharelando em sociologia pela UNINTER e licenciando em Letras- Português Unipampa, henricoi@hotmail.com.