O voo do pavão e a volta do cipó de aroeira/ Coluna Adriano de Souza

Imagem disponível em https://www.mdig.com.br/index.php?itemid=37168. Acesso: 17/11/2020.

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Acesso: 17/11/2020.

Por Adriano de Souza

Brás Cubas vinha caminhando, refletindo sobre sua complicada relação com Virgília, perdido em suas cogitações egocêntricas, cruzando o Valongo¹ e se depara com a seguinte cena:

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.

— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!

— Meu senhor! gemia o outro.

— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.

Parei, olhei… Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

— É, sim, nhonhô.

— Fez-te alguma coisa?

— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, — transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto! (p. 121-122, grifos meus).

O voo raso de um pavão: eis aí a metáfora em que encerro todo o personagem Brás Cubas, sua psicologia, sua visão de mundo, enfim, seu caráter. O máximo de empatia que Brás Cubas desenvolve, ao presenciar a cena acima, é esse falsete católico pelo qual aconselha Prudêncio, alforriado pelo pai de Cubas, a perdoar a pessoa a quem fizera cativo. Enquanto eu lia e relia esse trecho, lembrava da canção “Aroeira” de Geraldo Vandré, cujo refrão sugere o revide: “a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar”. 

Dei pra imaginar tal episódio do livro numa versão de Vandré: o cipó de aroeira de Prudêncio estalaria era no lombo de Brás Cubas, por todas as vezes que servira de montaria para as brincadeiras perversas do nhonhô. “Madeira de dar em doido [descendo] até quebrar” e a elite escravista luso-brasileira assoviando e chupando a cana plantada por mãos negras.

Em Machado de Assis, o sonho do oprimido, Prudêncio, é transformar-se em seu opressor, Brás Cubas, motivo pelo qual Prudêncio se torna um agente da manutenção da opressão e do autoritarismo. Tal quadro poderia ser freado por um processo de educação libertadora, diria Paulo Freire. Caberia então a pergunta: seria o medo da volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar o principal fator da campanha difamatória direcionada ao pensamento e à figura de Paulo Freire?

(Insira aqui uma onomatopeia para garganta coçando) Pois bem… Voltando à coisa do pavão. Reconheço, comparar Brás Cubas a um pavão é coisa levada a cabo pelo próprio personagem. Trata-se justamente do momento em que Virgília, personagem fundamental para 

a trama, instada a escolher um entre os dois pretendentes que a cortejavam, opta por Lobo Neves, preterindo assim o nosso narrador e protagonista Brás Cubas. 

Isso se dá no capítulo XLIII (isto é, 43, aliás, se você, como eu, só se lembra da numeração romana até o 39, o livro Memórias Póstumas vai te ajudar a revisar esta matéria): 

 

Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que fossem não queria dizer coisa nenhuma. O lábio do homem não é como a pata do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário. (p. 91).

 

Pavão é um bicho belíssimo, poucos duvidam disso. Mas já viram um pavão voando? Há quem ache altivo e garboso até. Sinceramente, eu acho um troço meio esquisito, com todo o respeito. O pavão já é bonito, tem aquela cauda exuberante coisa e tal, e ainda quer voar? Não dá, gente, é ostentação demais. Fato é que ele voa eventualmente; não passando, porém, de um voo mediano em altura e distância, por isso mesmo, um voo medíocre, como é, aliás, a configuração existencial do personagem Brás Cubas. 

Detalhe importante: ele é um sujeito que reconhece a sua mediocridade existencial, condição que o coloca em destaque, se comparado àqueles que, embora medíocres, acreditam-se expoentes da genealogia e da espécie humana. Que contradição fascinante: destacar-se por reconhecer a própria mediocridade. E que fabulosa complexidade tais personagens passam a assumir na obra machadiana a partir de Memórias Póstumas, não é à toa que aqui, segundo a crítica, o gênio do autor começa a despontar.

Diz-se que a leitura de livros literários é uma atividade silenciosa e individual. Estou começando a discordar desse postulado. Lendo Memórias Póstumas eu era constantemente desassossegado, ora por Vandré, ora por Paulo Freire, ora vinham ambos debater com suas pronúncias deliciosamente nordestinas, tudo isso ao som de Pavão Mysteriozo do, não menos nordestino, Ednardo. Finda a leitura e já éramos confrades em torno de Machado de Assis, perguntando-lhe coisas, bebendo um pouco de sua bruxaria. Observando-nos, em algum lugar do além, Brás Cubas, indiferente, haveria de nos condenar.


¹“O Valongo (…) é um dos mercados de escravos mais bem documentados na história da escravidão. (…) Situado [no RJ] entre os atuais bairros da Gamboa, da Saúde e de Santo Cristo, foi por quase duzentos anos o maior entreposto negreiro da América. Em 1808, quando a corte portuguesa de dom João chegou ao Brasil, navios vindos da costa da África despejavam no Valongo entre 18 mil e 22 mil homens, mulheres e crianças por ano. Muitos ali permaneciam em quarentena, para serem engordados e tratados das doenças. Os demais ficavam estocados em casebres e barracões à espera de compradores, que, quando necessitados de mão de obra, se dirigiam ao local como se visitassem uma feira qualquer.” [GOMES, Laurentino. Escravidão: vol. 1 do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019, p. 299-298.]

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ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. In.: ASSIS, Machado de. Todos os romances e contos consagrados: volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. [1880].

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Adriano de Souza, no mundo, é só mais um. Em seu país, não é mais do que ninguém. No Rio Grande do Sul, nasce a cada mês de julho. A Santa Maria volta sempre que precisa se reencontrar. Em Camobi, amarelou seus verdes anos. Em Bagé faz análise. Em casa, pelas cordas do violão, vai tocando a vida, às vezes desafina, outras não.

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