Ano 04 nº 071/2016 – O que fizeram de você, Lolita?
Ana Isabel de Sousa Amorim.
Letras – Línguas Adicionais: Inglês, Espanhol e suas respectivas literaturas – UNIPAMPA.
Quem nunca ouviu falar de Lolita de Vladmir Nabokov? A doce criança que seduz o homem mais velho com a sua beleza e sensualidade inabalável levando a cometer loucuras? Ou da menina sensual e cativante que consegue fazer dois homens maduros cair aos seus pés? Pois bem, esqueça-a!
Essa não é a Lolita real. Ela nem ao menos chega perto de ser a Lolita, essa é a visão de Humbert Humbert, o narrador do pseudo romance de Nabokov. Em “Lolita”, um homem de meia idade se muda para a casa de Charlotte Haze e sua filha Dolores. Não demora a Humbert, pedófilo confesso no livro, se interessar por Dolores, apelidada de Lolita.
Dolores tem 12 anos, bela, inteligente e cativante. Mas, a verdade é que não sabemos qual é a Dolores real, Humbert a narra como um ser altamente sexual que o atrai. Ficamos presos a ideia cruel de que uma menina de 12 anos seduz um homem mais velho. Ao decorrer do livro, Humbert se casa com Charlotte, que vem a falecer, e se torna padrasto de Dolores, vivendo uma falsa relação de pai e filha com a mesma.
Enquanto a sociedade os vê como uma dupla normal, a menina é abusada, perseguida e tida como objeto sexual. Humbert retrata sua obsessão doentia como uma grande e perturbada história de amor. Mas esse não é sequer o pior ponto. Dolores vem a passar por coisas muito piores até o fim do livro e sendo insistentemente retratada como objeto sexual.
Se a deturpação parasse na ficção, mas não. Alguém achou adorável tornar uma menina de 12 anos ícone sexual, transformando a história em dois filmes, um de 1962 e outro de 1997. No filme de 1997, Lolita é retratada como uma predadora sexual. Mesmo o livro deixando claro a rejeição da menina, o filme a retrata como alguém egoísta, manipuladora e que mantém relações sexuais com Humbert.
A questão que vem é: Lolita, o que fizeram com você? A mídia literária e cinematografia tornaram Lolita em um símbolo sexual a ser idolatrado e desejado. Lolita que tem 12 anos e está descobrindo o mundo, que se torna orfã e é obrigada a achar um meio de sobreviver em meio aos abusos do padrasto. Lolita que não tem voz, que é retratada por um pedófilo de 40 anos que nutre interesses pelas ditas “ninfetas”.
Normalizaram pedofilia, normalizaram abusos, deram uma nova classificação a meninas desenvolvidas sexualmente “Lolitas”. Ignoraram o fato de um homem de meia idade sentir atração sexual por uma criança, e evidenciaram a sua descoberta da sexualidade para utilizar de argumento que era consensual, mas a verdade é que não era e não é.
Mas, mesmo que fosse consensual, em que universo uma menina de 12 anos tem maturidade para consentir relações sexuais com um homem de 40 anos? Em que universo é normal e aceitável que um homem maduro sinta atração por uma criança?
Dolores era a Lolita de 1955, desde então existiram inúmeras Lolitas que tiveram seus traumas ignorados e normalizados. Pois, como evidenciado pela narrativa de Nabokov, ninguém se importa com Lolita. Recentemente, em Porto Alegre, uma Lolita veio à tona. Abusada sexualmente pelo pai, ignorada pela família, a menina conseguiu judicialmente a liberação para o aborto e foi humilhada por um promotor que se julgou no direito de culpar a menina pelo que lhe aconteceu.
É isso que fazemos com Dolores quando acreditamos em Humbert e em seu relato apaixonado de como ele a ama. Não, Lolita não é sobre amor. É sobre pedofilia, hipersexualização infantil, abusos. É sobre uma criança ser tratada como uma mulher, mas continuar sendo criança. É sobre toda uma sociedade ignorar o fato de que há homens estuprando meninas.
Com o coração dolorido após finalmente falar dessa história perturbadora, deixo aqui a pergunta que motivou este texto: Lolita, o que fizemos com você?
Creio que falta um pouco ao artigo mensurar a importância literária da obra também. O motivo pela qual ela é transgressora e a razão pela qual, concordando neste aspecto com o texto, hoje não há mais o choque proposto pelo Nakobov na composição de seu romance.
O termo lolita se tornou tão profundo no imaginário que virou sinônimo do que, atendo-me as palavras da obra, chamou-se de ninfa. Enfim, uma garota que, na cabeça da personagem, e daqueles que sexualizam a criança, seria sedutora.
Mas creio que a adoração por conta da romantização da obra exista por conta de seus leitores, não de seu autor. Se hoje há uma parcela de leitores incapaz são incapazes de ler que o romance, mesmo narrado pelo velho, é amargo e depressivo, é uma culpa do leitor e não do autor.
Ressalto tudo isso porque a obra já se inicia com o desfecho da personagem. E nele a moral e a punição de qualquer transgressão está presente. O grande mérito da narrativa é, justamente, escolher a voz dominante para narrar. E o leitor se sentir incomodado com um homem que pressupõe que esta relação é natural.
Mas mesmo nesta narrativa feita a partir da opinião de um personagem, é evidente que, citando o texto, a sociedade não os vê como normal, o próprio Humbert reconhece que o desejo dele é errado. Porém, a escrita da obra, não tece julgamento, ela apenas narra a história.
Onde este texto vê um conceito deturpado, observo uma construção composta de um homem seguindo seu desejo. Um fato que não significa que ele não esteja errado, mas, de novo, esse é o mérito da obra. Desmistificar o predador, fugir de um esteriótipo e dizer que ele existe e está escondido atrás de pessoas que aparentemente são improváveis. Se hoje a ciência avançou suficientemente para ponderar que a pedofilia é uma doença / desvio comportamental predatório, conclui-se que o pedófilo não está concentrado em um esteriótipo. E talvez por isso a obra pareça tão real e assustadora.
Acho que a procura de uma leitura fácil que fosse polarizada resultou em uma leitura pouco absorvida, se permite-me a honestidade. Quando li a obra, me senti muito mal pela naturalidade da narrativa e do martírio que era pra Dolores a convivência com o homem. Eu era bem novo quando li e isso me chocou muito, eu deveria ter uns dezesseis anos quando li e ter a mesma idade da protagonista, ainda que do sexo oposto ao meu, incomodou-me muito.
Em um pequeno paralelo com uma obra contemporânea sobre um tema semelhante, O Quarto, adaptado ao cinema como O Quarto de Jack, há uma diferença brutal de construção da narrativa. O Quarto é claramente mais ficcional, escolhe um narrador infantil para evitar o choque e ainda ruma para um final feliz que, sabemos, muitos casos de abusos – seja ele de qualquer tipo – não levam a crer. Sob este aspecto considero Lolita muito mais realista, porque temos um narrador que acha que sua relação é, de fato, amorosa e por mais que tenha consciência de algo errado, sobrepõe isso a seu próprio desejo e domina a garota. Uma realidade muito mais crua e tangível com o que, infelizmente, vemos em casos de abusos reais.
Mas, voltando ao aspecto literária, isso é Nakobov. Um autor que nunca produz um rumo fácil, que cria conflitos difíceis e tensões incríveis em seus personagens para que ele cause comoção – positiva ou negativa – no leitor. Lolita, como romance, é um falso positivo. Não é uma obra a favor da pedofilia e de mostrar uma imposição do mais forte sobre o mais fraco. É justamente o oposto. E pena que muitos leitores conhecem-o somente por essa obra e não exploram mais sua prosa.
Não creio que a obra se manifeste a favor de qualquer predator por usar um como narrador. Pelo contrário como mencionei. A mídia, sim, pode manipular o conceito da lolita a partir disso e, de fato, é inegável que há uma exploração mercadológica da criança que, infelizmente, o cunho sexual pode fazer parte. Mas a narrativa não é isso. É como ler Nelson Rodrigues e não compreender que todos os excessos na obra são, justamente, para demonstrar como eles são maléficos.
A pergunta final, porém, se mantém interessante e acho que é o ponto da questão a ser levantado. O que nós, como leitores e como sociedade, fizemos dessa questão de sexualização infantil e do cuidado que não tomamos diante de quem sofre o abuso. Mas a literatura tem essa multiplicidade de leituras. De qualquer forma, sugiro uma outra lida. Engolindo em seco o fato de estar acompanhando um predador. A raiva ao ler é proposital.
Dizer que Lolita é um “romance” no sentido de uma relação amorosa, para mim, que até aqui deve ter ficado explicito o apreço por literatura e pelo próprio Nabokov, é o mesmo que achar bonito a relação suicida de Romeu e Julieta de Shakespeare. Mesmo que ambas as obras sejam diferentes, há um fator em comum entre elas. Elas não são “bonitas” de maneira alguma. Mas, infelizmente, são os leitores que tem essa visão.