Ano 09 nº 073/2021 – O conto da aia: um futuro distópico à espreita?

É possível que um livro literário escrito há 35 anos seja um prenúncio do que está por vir?

Por Taiza Fonseca

Gostaria de trazer uma pesquisa que me acompanhou no meu último ano de graduação na Letras, que é uma análise comparativa entre a subalternidade da mulher brasileira e o livro da autora canadense Margaret Atwood, O conto da aia, originalmente publicado em 1985 e trazido para o Brasil no ano de 2017.

Nesse período, a primeira tradução para língua portuguesa do livro O conto da aia chegou ao nosso país. Não muito depois do lançamento, decidi fazer a leitura do livro, uma literatura distópica que havia recentemente ganhado uma adaptação em série. Entretanto, após poucos capítulos lidos, percebi que apesar de ser um romance ficcional, muitas das vivências vividas pelas personagens da narrativa, se pareciam com realidades cotidianas da mulher no Brasil.

Bem, antes de falar as razões pelas quais olhei para essa leitura com um olhar comparativo, porque não conversarmos sobre o que se trata esse livro espetacular:

Em O conto da aia, somos apresentados a um mundo exposto ao aquecimento global, junto à guerras e radiação que causaram efeitos terríveis a terra, prejudicando plantações de alimento e até mesmo a sobrevivência de espécies marítimas. Em virtude disso, muitas mulheres (e homens) tornaram-se inférteis, fazendo com que a taxa de natalidade tenha caído em porcentagens assustadoras. Após um golpe arquitetado por fundamentalistas contra o governo dos Estados Unidos, Gilead é criada, como uma teocracia em que os direitos das pessoas na sociedade são limitados. Essa nova forma de organização social teve parâmetros bem específicos em sua imposição, tendo como principal argumento a necessidade de impor regras para o mantimento e a garantia da procriação da espécie. 

Nessa nova sociedade, as mulheres tiveram seus direitos estraçalhados, primeiro perdendo os seus empregos (e o direito de trabalhar), junto de suas contas bancárias, que foram transferidas para os maridos ou para o homem mais próximo da família. Depois aconteceu a proibição da pílula anticoncepcional e a privação da liberdade das mulheres poderem andar sozinhas na rua. E, por fim, para instaurar essa ditadura, as mulheres foram cerceadas ao direito de ler e as que ainda eram consideradas férteis, perderam direito ao próprio nome e ao próprio corpo tornando-se ‘’Aias’’, que são mulheres condicionadas à engravidar, parir e amamentar uma criança que seria destinada à casa daqueles que constróem essa ditadura, os comandantes e suas esposas. 

Todo esse processo é realizado com um pretexto religioso, os rituais acontecem no período fértil da aia e o coito (lê-se estupro) ocorre na cama do comandante sob a supervisão da esposa.

Eu quase engasgo. Ele disse uma palavra proibida. Estéril. Isso é uma coisa que não existe mais, um homem estéril não existe, não oficialmente. Existem apenas mulheres que são fecundadas e mulheres que são estéreis, essa é a lei. (Offred, O conto da aia, pág. 75)

Essa história é contada em primeira pessoa, por uma mulher que não possui nome, uma aia, chamada de Offred (de Fred – o comandante que é seu dono) e é através dela e de suas memórias que podemos compreender como que os direitos das mulheres passaram a ser questionados, assim como todo processo de golpe foi se delineando dentro da política de Estado ao longo dos anos. Um processo de revisão de direitos, discurso político e religioso nas propagandas eleitorais, nos veículos de mídia e nos projetos de lei. Através dessa figura, passamos por suas difíceis experiências nesse mundo que passa a tratar as mulheres enquanto propriedade.

“Conto, em vez de escrever, porque não tenho nada com que escrever e, de todo modo, escrever é proibido. Mas se for uma história, mesmo em minha cabeça, devo estar contando-a a alguém. Você não conta uma história apenas para si mesma. Sempre existe alguma outra pessoa. Mesmo quando não há ninguém. Uma história é como uma carta.” (Offred, na introdução do livro O conto da aia)

Nesse universo, não só as mulheres férteis são condicionadas a desempenhar um papel à serviço da ditadura, as mulheres mais velhas, que não possuem marido, perdem o nome e se tornam Martas, isto é, mulheres que devem limpar e cozinhar na casa dos comandantes. Também encontramos as Tias, mulheres que são incubidas da doutrinação religiosa feita nas aias, além das Esposas que seguem a cartilha do lar e contribuem para o adestramento e tortura das aias. As ‘’Não-mulheres’’ são aquelas que continuaram insubmissas, as que não podem mais ter filhos, as mulheres lésbicas, todas elas são enviadas a campos radioativos para trabalhar até a morte. Além disso, algumas profissões tornam-se crime, como médicos que faziam abortos legalizados, e a penalidade por esse ‘’pecado’’ é a morte, assim como os ‘’traidores de gênero’’, pessoas LGBTQIA+ são assassinadas também.

Essa é a premissa do que podemos encontrar no livro de Atwood. Agora você pode se perguntar, mas o que esse livro tem a ver com as mulheres no Brasil?

Como você pode observar aqui, relatando a premissa deste romance, já podemos ver que o livro adota um tom extremado e projetivo, mas que ao mesmo tempo, os elementos nele colocados podem nos remeter à situação social da mulher em nosso país, principalmente, porque nos encontramos em um momento em que o discurso religioso e fundamentalista está em alta no mundo todo e isso significa que o lugar da mulher também está em discussão.

A garantia de direitos das mulheres no Brasil é uma luta contínua e que constantemente é colocada em questionamento. É por isso que devemos estar sempre atentos. Essa é uma das ideias que Margaret Atwood trouxe ao escrever essa obra: escrita em 1985, o romance de Atwood tem um caráter futurista, como se fosse um aviso do que está à espreita, algo a ser combatido, como o fundamentalismo/conservadorismo religioso. 

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(The handmaids Tale, 2017, Margaret Atwood)

No Brasil, não é novidade que as bancadas religiosas têm tomado cada vez mais espaço na política e isso dá a elas mais poder de decisão. Com esse poder, diversas vezes o direito das mulheres foram colocados à prova, como no ano de 2013, quando Jair Bolsonaro, ainda deputado, criou um projeto de lei junto à 12 outros deputados que desautorizava hospitais e médicos a atenderem vítimas de estupro com o argumento de que esse atendimento poderia abrir uma brecha constitucional para o aborto. Esse projeto de lei, que ainda está em votação, poderia dificultar o processo de denúncias, fazendo com que os dados sobre estupro no país caíssem drasticamente, não porque o problema foi resolvido, mas porque foi mascarado.

Esse é apenas um dos exemplos de quando a religião atuou junto à política: políticas públicas constitucionais passam a ser questionadas com o olhar dos valores religiosos. A régua da moralidade tem a medida religiosa também quando temas sobre educação sexual passam a ser repudiados para serem tratados nas escolas e temos a abertura para discussão do tema ‘’abstinência sexual’’ para crianças, promovido pelo governo de Damares, mesmo que tenhamos um número de registro gigantesco de crianças que são abusadas e ameaçadas dentro do próprio la e, que em sua maioria, desconhecem os nomes básicos dos órgãos que possuímos, como pênis e vagina, tão pouco compreendem o que é consentimento, quanto mais a ‘abstinência sexual’.

Ao longo dos anos, nós mulheres, ganhamos espaço para discutir questões sobre o corpo, sexualidade, autonomia, consentimento e o prazer, mas ao mesmo tempo o conservadorismo tenta jogar um véu sob essas discussões, com o grande desejo de que voltemos para preceitos antigos de existência, em que a mulher era confinada ao lar e privada dos espaços públicos, onde o signo dominante da existência feminina seria automaticamente relacionado à maternidade, ao lar, à cozinha e a servidão.

Quando lemos um livro distópico que fala sobre a privação de direitos das mulheres e a condição de existência enquanto propriedade de algo/alguém e encontramos semelhanças com a realidade, é porque essa ameaça aos nossos direitos continua sendo diária, assim como Simone de Beauvoir disse: “Basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados” e, de fato, é imprescindível olharmos atentamente para os movimentos religiosos e conservadores que atuam nos órgãos governamentais e observarmos quais são as estruturas sociais que eles tentam movimentar, e é dessa forma que encontraremos a revisão de direitos já garantidos.

Não é à toa que a obra de Margaret Atwood, O conto da aia, tenha se tornado um fenômeno mundial, uma obra que provoca tantas reflexões sobre família, religião, violência, Estado, poder, ditadura, imposições, papéis e designações considerados femininas num momento de avanço substancial de retrocessos. A obra traz tanta identificação porque o lugar da mulher no mundo é um lugar de perigo, um lugar de luta constante por direitos e pela manutenção dos direitos já conquistados. Nessa obra, encontramos uma exposição de um regime baseado no controle, na violência, com preceitos religiosos de domínio através da política, uma realidade que podemos observar ter acontecido há 50 anos, no Brasil, em momento de Ditadura Militar, bem como podemos ver ainda mais vívido na atualidade.

“Alguns livros assombram o leitor. Outros assombram o autor. The Handmaid’s Tale fez os dois”, disse Atwood em entrevista para o The Guardian e tenho que concordar. Ao fazer a leitura, me senti ainda mais atenta a esses processos, como se o livro literário despertasse em mim um sentimento de resistência a esses rumos totalitários.

“Tudo o que é silenciado clamará para ser ouvido ainda que silenciosamente.” (O conto da aia, Margaret Atwood)

Texto originalmente postado no site Rádio No Cast.

Taiza da Hora Fonseca é acadêmica do curso de Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Federal do Pampa, fez parte do Diretório Acadêmico de Letras no período de 2015 a 2017 e participou como bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) no período de 2016 a 2018. Atualmente faz parte do PET – Programa de Educação Tutorial e seus interesses são: Temas Transversais, Política e Movimentos Sociais, Literatura, Poesia e Arte.

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