Nasce-se humano?

Por Anthony Colares

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Há alguns dias estava recolhido em casa, como costumo fazer nos finais de semana, interagindo nas redes, conversando sobre literatura, em especial a clássica que é minha paixão incondicional e pilar mais sólido de minha vida. Enquanto viajava entre as épocas e estilos diferentes, deparei-me fortuitamente com um trecho destacado por mim mesmo há dois anos atrás, no livro : Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, da nossa célebre Clarice Lispector. O trecho dizia o seguinte:

“E o que o ser humano mais aspira é tornar-se um ser humano. ” 

Isso foi uma bela lâmpada acendendo sobre minha cabeça, pois há um longo período venho me perguntando a cerca de alguns acontecimentos que cercam a vida da nossa sociedade, ainda que eu disponha apenas da visão de um jovem adulto, aspirante a professor numa cidade pequena na fronteira de um dos maiores países do mundo (em questão de território).  Esta fala de Clarice foi um belo tesouro para mim, pois me fez refletir sobre o que nos faz, apesar de sermos seres pertencentes a uma comunidade global tão difundida, muitas vezes sermos os maiores flagelos de nossas próprias existências. Isso se aplica desde coisas mais comuns, como ambientes familiares de difícil convívio, como questões mais tirânicas e estruturais como questões de gestão nacional e zelo da população residente de uma nação que aparenta ser tão orgulhosa.  

O Brasil, pátria das injustiças e referência mundial de nação com grandes números de discriminações, apesar de carregar por décadas o ditado de ser a terra do homem cordial, mostra aos poucos para nossos vizinhos globais, as situações lamentáveis das quais nosso povo se vê obrigado a conviver diariamente. O momento em que vivemos tem se mostrado tão retrógrado que se torna quase inverossímil cogitar a possibilidade de que nosso país seja gerido por outros seres humanos. Podemos ir para cada setor de nossa nação para indicar uma desgraça diferente: O desmatamento amazônico crescendo em níveis muito maiores em relação aos de seis anos atrás. A educação tendo área do pensar e refletir humano sobre as nossas condições cada vez menos expressiva dentro da escola, em especial com a nova reforma do ensino médio. A alimentação, com o país sendo um grande exportador mundial de alimentos como grãos e carne, torna cada vez mais difícil para os próprios trabalhadores que tornam o processo de produção destes alimentos possível, consumirem o que produzem. E, a mais recente e triste notícia, propostas de emenda constitucional que propõem o pagamento de mensalidades das universidades públicas e ameaçam a gratuidade do nosso Sistema único de saúde (SUS).

As coisas continuam tomando um caminho que só nos leva cada vez mais a indagar internamente: Cadê a câmera? O que ainda seria difícil, pois nem mesmo o mais infame dos comediantes poderia rir perante tantas situações de insalubridade. Não há uma geração viva neste país atualmente, que não tenha sofrido dois fatais golpes, um em seus direitos e outro em sua dignidade. E a esperança, sendo dita como a última que morre, está ameaçando acompanhar os direitos de todas nossas gerações, junto com o pouco de dignidade que nos resta.

Então nos viramos, olhamos para todas as direções, procurando um Maquiavel que nos esclareça, uma revolução que invada os sussurros nas tardes das praças ainda públicas. O que posso dizer perante toda essa situação desumana que nos contempla e invade cada vez mais nossa casa e nosso interior, é que busquem entender nessas falas de Lispector, embebidas na nobreza, filosofia, mas principalmente na virtude como um todo, o que significa ser humano. Afinal, que espécie conscientemente prejudica tão livremente seus semelhantes, sem qualquer pudor, arruinando os futuros de sua própria espécie, não lhes dando um destino que não seja a ruína e a miséria, tudo isso articulado através de homens discursando a partir uma oratória rebuscadamente vil, vestidos com roupas que a maioria precisaria de vários salários para comprar e que mesmo assim as paga todos os dias com seu suor e continuará a pagar até o último dia de sua vida com o dinheiro que se sacrificou para obter.

Se me acharem enfático demais, peço que me mostrem uma outra conclusão que não indique uma vilania tão assustadora de seres que compartilham a mesma constituição biológica que nós e que detenham a ousadia de intitular-se humanos, pois juro-lhes que não encontrarás dentro de nosso mundo real, outro ser, racional ou não, que sequer se aproxime dessa descrição tirânica, que não sejam esses falsos humanos que tão bons cristãos se intitulam. Que dantescas paisagens têm esses semelhantes nossos, se esforçado para criar, sem qualquer uso de perspectiva artística, e como tem triunfado tão indignamente na execução destes infames feitos.

É de forma angustiante que nos vemos inclinados a revisitar e talvez adaptar para essa situação que vos apresentei, a fala de Simone de Beauvoir, teremos que então evidenciar cada vez mais para as próximas gerações o que é ser humano e os mostrar o porquê deste processo ser de suma importância para o desenvolvimento e saúde coletiva? 

Entristeço-me também por repetir a melancólica fala de Bertolt Brecht: Que tempos são estes, em que precisamos defender o óbvio?

Apenas posso concluir minhas palavras, seja por crença pessoal ou convicção egoica: Não é isto um homem (humano)!

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Anthony é graduando do curso de Licenciatura em Letras – Português e Literaturas da Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA/Campus Bagé-RS). Atualmente está no 7º semestre. Em 2019, ingressou como bolsista no Programa de Educação Tutorial – PET Letras/Bagé. Nesse projeto, desenvolveu pesquisas sobre movimentos de resistência na educação brasileira e também de análise de personagens de literatura clássica a partir da perspectiva da Análise do Discurso. Suas áreas de interesse são os Estudos da Literatura, Literatura Clássica, Análise do Discurso, Poesia e Escrita. 

“Esta é a coluna do PET-Letras, Programa de Educação Tutorial do curso de Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa, do campus Bagé. O programa, financiado pelo FNDE/MEC, visa fornecer aos seus bolsistas uma formação ampla que contemple não apenas uma formação acadêmica qualificada como também uma formação cidadã no sentido de formar sujeitos responsáveis por seu papel social na transformação da realidade nacional. Com essa filosofia é que o PET desenvolve projetos e ações nos eixos de pesquisa, ensino e extensão. Nessa coluna, você lerá textos produzidos pelos petianos que registram suas reflexões acerca de temas gerados e debatidos a partir das ações desenvolvidas pelo grupo. Esperamos que apreciem nossa coluna. Boa leitura”.

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