Ano 08 nº 191/2020 – Narradores do semi-árido

                                                       NARRADORES DO SEMI-ÁRIDO

                                                            José Nivaldo da Silva

 

                                                                      Dias Frios

Os dias frios estavam de volta. Estávamos ainda no outono, e mesmo assim já começava a antecipação dos longos e invernosos dias. Aqueles que nos trazem sensações as mais diversas. Lembro-me de um episódio, em especial, ocorrido em meados da década de noventa. Era um dia muito frio. A temperatura estava ao redor dos 8 graus nas proximidades do shopping Eldorado, em São Paulo. Descendo uma daquelas movimentadas ruas, enquanto caminhava para escapar do frio, fui surpreendido por uma figura humana: um provável “morador de rua”. Imóvel, sentado no chão com as pernas estiradas, devia estar submetido ao rigor daquela temperatura havia horas. O pálido semblante facial provocado pela exposição ao frio, e também os sulcos bem acentuados que partem da lateral do nariz em direção aos cantos do lábio superior, pareciam externar um ar de profundo sofrimento. “A seletividade urbana da selva humana”. Algo como que um pensamento. Assim, de repente, meio irrefletido veio-me à mente, de forma confusa, talvez, e inconsciente. Talvez um modo de “explicar” tal fenômeno de imediato tal qual aparece à consciência. Autoproteção? Sei não. Continuei andando, atônito, pensando, sem jamais imaginar que uma outra cena de semelhante natureza estivesse prestes a me surpreender. Um outro homem em amarrotados trajes de inverno, um possível ocupante das calçadas, repousava sentado sobre o chão frio, recostado à parede de alguma edificação. Aqui, mais ainda a imagem de fragilidade perpassava-me a mente nesses dias frios em que toda fragilidade djavaniana sobre o ser incide; ou daquelas tardes molhadas de agosto em que se sente a “chuva entrando pelos ossos, como uma coisa, um troço, que não se sabe explicar”, para “valencear”. Aqui, Djavan e Alceu se encontram. O primeiro, na subjetividade poética do espaço; o segundo, na realidade objetiva da existência. Como se o eu observador (in)consciente de minha própria imagem reduzida e refletida no outro, ali à minha frente, homem-fragmento, peça descartada do sistema, coisas da vida, vida-coisa…

Mas eu sumi na velocidade urbana para não virar poeira humana. Dizendo de outra forma, nos termos dos poetas de Um Trem para as Estrelas: correr p´ra não desistir. E assim, sempre que os dias frios retornam, certas inquietações reacendem antigas rochas em nós adormecidas, fundindo-as até extravasar para o exterior, como as lavas de um vulcão em erupção. Daí termos alguma certeza de que também esses dias frios parecem comportar sensações diversas, ao encararmos algo profundo e inerente ao humano –  a dor, que nos iguala. Que nos dias frios nos cala. Quando, então, em nós o interior fala. Dias frios são também um convite à memória e à reflexão. Pois é necessário que façamos leituras da vida, para que possamos reinventá-la…

image1                                                                                                        (Fonte: UOL imagens)

José Nivaldo da Silva é Mestre em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo – USP.  Narradores do Semi-Árido visa registrar fatos do cotidiano a partir de observadores do Semi-Árido nordestino.

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