Memória e afeto, memória de afeto.

Por Saulo Eich

Ontem, dia 24 de maio, aqui na cidade de Bagé-RS, assinalou-se o feriado municipal religioso de Nossa Senhora Auxiliadora, considerada a co-padroeira do município. Crenças à parte, a simbologia dessa data me remete diretamente à infância – as casas que, ao cair da tarde e início da noite, se iluminavam com velas nas janelas. A explicação para tal tradição vem do ano de 1943. Durante o período da Segunda Guerra Mundial, um padre atuante na cidade, Edgard Aquino Rocha, pediu que a comunidade religiosa apagasse as luzes das casas à noite e iluminasse suas janelas com velas, no intuito de, simbolicamente, pedir proteção aos soldados que estavam na guerra, para que os eles voltassem com vida.

Dito isto, volto ao que eu gostaria de destacar aqui, neste texto, sobre as memórias e as lembranças que nos remetem a períodos bons, ou nem tão bons assim, mas importantes de nossa vida. Chamamos de memórias afetivas os conteúdos que, em dado momento, assimilamos, associando-os a momentos específicos – e, talvez, especiais – da vida. Destaquei, inicialmente, a tradição religiosa local para, utilizando da autorreferência, ilustrar sobre uma memória muito viva em minha lembrança: o anoitecer do dia 24 de maio, quando eu e os amigos da rua caminhávamos por várias quadras, só pra observar em quantas casas havia uma vela na janela. Pra mim, era uma sensação quase mágica, simbolizada numa manifestação tão simples. Ver tantas casas compartilhando o mesmo hábito, além de achar muito bonito o efeito que as velas, casa a casa, garantiam, quando eu olhava a linha de residências da rua em perspectiva ampliada.

Outras memórias afetivas me são muito vivas e presentes, como o cheiro do shampoo que minha vó usava no banheiro da casa dela, numa localidade do interior de Santa Catarina, chamada Linha Maria Preta, entre duas pequenas cidades, Guarujá do Sul e Dionísio Cerqueira, no extremo oeste, fronteira com a Argentina. A casa da vó era de madeira, com uma área de varanda grande e um pátio de terra ao redor, com o chão sempre varrido e árvores que quase fechavam a parte de cima do quintal. Quando se olhava pela área, à frente, do outro lado de uma estrada, havia um morro onde se plantava fumo. Mais para o lado, existia um galpão onde o fumo era depositado e secado. E, se não me falha a memória,  quase em diagonal ao galpão de fumo, havia um chiqueiro de porcos, com corredores que, para o meu pouco tamanho, pareciam imensos. Mas, vou voltar ao cheiro do shampoo.

O banheiro da vó, assim como o restante da casa, era de madeira, com algumas frestas entre as tábuas, o que me deixava sempre desconfortável quando precisava tomar banho. Mas existiam diferenciais que compensavam a tensão pela pouca privacidade que as frestas das tábuas impunham. Um deles era o chuveiro: um balde de lata pendurado com uma corda e uma torneira anexada na parte inferior. Não tinha a opção de banho demorado, muito menos de cantar no chuveiro. A modalidade do banho cobrava agilidade e perspicácia, ou a água ia embora rapidinho. Algum adulto colocava a água aquecida no chuveiro, ou balde, e ligava a torneira, enquanto eu esperava enrolado na toalha para que todos os procedimentos da saga para o banho fossem concluídos. Talvez, pensando assim, o banho não tinha nada de diferencial a não ser toda a dificuldade que ele oferecia, mas, para uma criança de uns 6 ou 7 anos, aquela novidade era tão mágica quanto ver várias casas com velas na janela. E tudo isso sentindo o cheiro do shampoo que a vó usava. E o melhor de tudo é que, assim como a tradição das velas na janela, que hoje ainda existe; o shampoo, que minha vó usava no banheiro simples dela, também ainda existe. Com o mesmo cheiro de antes. 

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Na imagem, um “chuveiro de balde”. 

Disponível em http://desabafosdejoseroberto.blogspot.com/2018/11/chuveiro-de-balde.html

Acesso: 25/05/2021.

Revisitar nossas memórias afetivas, seja relembrando ou compartilhando com alguém – como eu estou fazendo aqui com vocês -, seja através de sensações e lembranças que eventualmente nos reportam a elas, é uma maneira especial de percebermos que, no percurso de nossas vidas, muito daquilo que, em linhas gerais, poderíamos entender como um aspecto simples e sem tanta importância, contribui para construir em nós o que somos e quem somos, com base nos afetos e na nossa capacidade ou, disposição, para nos vincularmos afetivamente a momentos, vivências e pessoas. 

Qual lembrança, carregada de afeto, veio à tona para vocês lendo estas memórias? 

Até o mês que vem! 

 

Saulo Eich é psicólogo clínico infantil e adulto, de abordagem Cognitivo Comportamental, em Bagé/RS.

 

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