Ano 09 nº 051/2021 – Lições tomadas aos sábios de Java (os de Lima Barreto)

Por Adriano de Souza

Nada do que vai aqui escrito tem qualquer relação com a Ilha de Java, essa que fica próximo à Indonésia, quase chegando à Austrália pelo continente asiático. Seguramente os há, aí em Java da vida real, sábios/as e virtuosos/as da maior qualidade intelectual. É que, neste texto, estou a tratar dos sábios de Java de Lima Barreto, que são, esses sim, retumbantes monstros soberbos da sabedoria de todos os tempos, isto segundo nos faz saber o narrador de Harakashy e as Escolas de Java, conto do livro Histórias e Sonhos de Lima Barreto, cuja primeira edição, se não me engano, é de 1920.

Antes de ir ao assunto, façamos uma sucinta explicação ao/à navegante mais desavisado/a que, por essas razões desconhecidas que chamamos acaso, aportou nestas páginas. Este eu que fala contigo aqui nestas páginas do Junipampa cumpre uma função de partilhar suas experiências de leitura, o que vem a ser um símile de… – na falta de melhor definição –, vem a ser uma espécie de…. como dizer…, digamos…, um booktuber raiz, ou seja, alguém que produz conteúdo sobre o universo da leitura e que, ao invés de fazer um vídeo estilizado, falando com desenvoltura e desembaraço, e postá-lo em seu canal do Youtube, escreve umas linhas e, assim, priva a audiência de saber como é sua voz, suas reticências, seus traços físicos etc. Bem, sendo assim, estou desde agosto de 2020 lendo Machado de Assis e Lima Barreto, e este é o décimo texto da saga, em que abordo a experiência da leitura da obra Histórias de Sonhos, primeiro livro de Lima a reunir seus textos esparsos e contos.

E aí entra uma coisa interessante que devo confessar assim sem meias palavras. Não foi uma leitura muito empolgante, devo dizer, então, que não curti muito o livro. Eu acho que esse é sempre o primeiro ponto quando se trata de tentar externalizar impressões de leitura. Mas a esse ponto deve suceder um segundo, que é a continuação do primeiro e que vem a partir da resposta à pergunta: por que (não) gostei? No meu caso, por que não gostei? Bem, digo que não gostei, primeiro, porque acho que fiz a leitura de uma forma equivocada para um livro de histórias curtas: fui lendo assim um texto atrás do outro, na ordem que o livro apresenta, procurando um núcleo de significação que pudesse agrupar as diferentes histórias e não encontrando, procurando um fio comum à teia dos textos e não encontrando, de maneira que essa busca desenfreada foi apoquentando minha leitura, porque são muitos textos e bem diversificados também, e virar as páginas foi ficando um gesto mecânico e aburrido

Eu disse “primeiro” logo ali acima, então agora devo dizer, pelo menos, um “segundo” para que a ordem das coisas de que quero tratar não fiquem assim só no plano da expectativa, né mesmo. Então, vamos lá; segundo, não gostei muito da leitura justamente porque, uma vez que não encontrei essa unidade que procurava desde o começo, senti meu interesse pelo livro ir naufragando aos poucos e a vontade de terminar o livro começou a me inquietar sobremaneira. 

Agora… digamos que o livro não tenha, de fato, essa unidade temática/estrutural/composicional que eu estava buscando; este fato, em si, é um problema? Claro que não… (desculpa ficar respondendo as perguntas que eu mesmo faço, sei que é chato, mas foi o recurso retórico que encontrei para este texto). Digo que não é, necessariamente, uma falha do livro, justamente porque já no seu título ele não anuncia nada além de histórias e sonhos. Quer dizer, é um título que, como diria Paulo Guedes (o professor de português e não o ministro), carece de concretude. Mas, por outro lado, é uma falta de concretude estratégica, pois permite ao escritor ir experimentando texto após texto formas, temas, estilos etc. Então é isso, prestemos atenção à concretude dos enunciados (ou à falta dela) e não cobremos mais do que eles (os enunciados) se propõem a entregar.

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O ator Hilton Cobra (Cia. dos Comuns) em cena na peça Traga-me a cabeça de Lima Barreto. Disponível em https://oglobo.globo.com/rioshow/critica-traga-me-cabeca-de-lima-barreto-23186989. Acesso: 19/04/2021.

E por falar em entregar, histórias e sonhos entrega uma boa dúzia de ótimos textos, bons mesmo, estou pensando em ‘O moleque’; ‘Cló’; ‘Uma noite no lírico’; ‘Um músico extraordinário’; ‘A biblioteca’; ‘Lívia’; ‘Uma vagabunda’; ‘A barganha’; ‘Sua excelência’ entre outros. Quero dizer então que, embora não tenha gostado do livro como um todo, achei que vários textos funcionam muito bem isoladamente, como é o caso de ‘Harakashy e as escolas de Java’. Inclusive, para aqueles/as leitores/as de tendência mais utilitarista, quero dizer, aqueles/as cujo ânimo só se desperta se houver a garantia de que determinado livro lhe proporcionará bons aprendizados e ensinamentos realmente importantes, passo, então, a um pequeno elenco do que se pode aprender com os sábios de Java:

  1. Literatura (não) é fazer entrar no patrimônio do espírito humano, com auxílio dos processos e métodos artísticos, tudo o que interessa o uso da vida, a direção da conduta e o problema do destino (p. 31). Essa definição de literatura é preciosa! Ou não…?A presunção é a imobilidade da inteligência.
  2. Títulos, diplomas, distinções de maneira geral e afins – por mais merecidas que possam ser – deveriam ser invisíveis e depositados de forma subcutânea, enquanto as pessoas dormem, sem estardalhaço e sem autopromoção. No fim da vida, no momento da passagem, o sujeito, a pessoa tem, então, a revelação: foi doutor/a, foi comendador/a, foi funcionário/a do mês, foi láurea não sei do quê e das quantas, foi por sete anos consecutivos estrela de prata, foi Nobel etc.
  3. A sintaxe da frase, observada assim na boca das pessoas, revela coisas surpreendentes: desconfie da languidez javanesca, da pachorra batava e de frases como até agora quem no há tratado?.
  4. E, por fim, mas tão importante quanto os demais,  a ironia é uma escola em que muitos se matriculam, mas de fato poucos aí estudam com dedicação e afinco necessários, embora se digam diplomados.

 

BARRETO, Lima. Histórias e Sonhos. In. BARRETO, L. Obra Reunida: vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. 

Adriano de Souza, no mundo, é só mais um. Em seu país, não é mais do que ninguém. No Rio Grande do Sul, nasce a cada mês de julho. A Santa Maria volta sempre que precisa se reencontrar. Em Camobi, amarelou seus verdes anos. Em Bagé faz análise. Em casa, pelas cordas do violão, vai tocando a vida, às vezes desafina, outras não.

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