Ken sou eu?*

Por Aline Reinhardt e Gilberto Stanchack Andrade de Lima

* atenção: este texto está repleto de spoilers do filme “Barbie” (2023). Não continue a leitura se você não quiser saber elementos-chave do enredo.

Que o lançamento do filme “Barbie”, dirigido por Greta Gerwig e estrelado por Margot Robbie, em 20 de julho de 2023, foi um estrondo cor-de-rosa em todo o mundo é inegável. Cheio de mensagens sobre empoderamento feminino e com toques de brincadeira e nostalgia necessários em um filme sobre um dos brinquedos mais conhecidos, amados e odiados da Terra, a obra de 113 minutos aborda a jornada de uma das bonecas – a Barbie Estereotípica – ao mundo real para “consertar” os sentimentos e reflexões pra lá de humanos que vem tendo, como pensamentos sobre morte, tristeza e desânimo, e que não combinam em nada com a perfeição do dia-a-dia que deveria ser experimentada na Barbieland. 

Nessa viagem, Barbie (Margot Robbie) é inadvertidamente acompanhada por um Ken (Ryan Gosling) apaixonado por ela, mas que é inseguro e que demonstra sentir-se sem propósito de existir a não ser para orbitar a loira. Ao transitar pelo mundo dito real, Ken se depara com homens em posições de poder e de dominância sobre o gênero feminino, o que ele interpreta como sendo sinal de respeito e de valorização da existência dos kens-homens, e se deslumbra com a sensação de ser admirado e de estar no topo da pirâmide social. A partir daí, em paralelo às aventuras que Barbie está vivendo, Ken retorna à Barbieland e lá implanta algo “revolucionário”: o patriarcado, aprendido no mundo real. O desafio da Barbie-protagonista passa, então, a ser restaurar o ambiente de paz da Barbieland e “desprogramar” as demais barbies para deixarem de serem submissas e serviçais em relação aos homens-kens.

O enredo, elogiado por muitos e encarado com surpresa por outros tantos, sofreu também ataques de setores conservadores da sociedade – e não foram poucos. E se, até agora, destacamos as ações de Ken em um filme que, afinal, é da Barbie, é justamente porque especialmente grupos de homens se manifestaram como ofendidos e até “atacados” pela obra cinematográfica, pelo papel desempenhado pelo personagem Ken frente à Barbie ou às Barbies, e por todo o girl power manifestado. “Lacroso”, “feminista” (em tom de ofensa) e “satanista” foram alguns dos adjetivos atribuídos ao longa, que foi ainda acusado de supostamente ser “contra valores cristãos e da família” e até mesmo “socialista” (uma ironia por si só, sendo a Mattel, fabricante da Barbie e “dona” do filme, uma empresa capitalista dessas com C maiúsculo). 

Diante da ferida masculina, aberta e inflamada, que o filme tocou, chegamos ao velho questionamento: a arte imita a vida ou a vida imita a arte? Independente da resposta, o cenário de caos (e sujeira) criado por Ken ao tentar desesperadamente responder quem ele era através do total apagamento de elementos relacionados à Barbie (e por extensão, do feminino) revela a insegurança e a total falta de autoconhecimento dos Kens. Paralelamente a isso, os acalorados adjetivos negativos vindo de homens na internet contra um filme mainstream convergem para o medo do holofote, agora cor de rosa, iluminar qualquer coisa que não sejam eles mesmos.

A carência emocional revelada pelo comportamento de Ken no final do filme ao propor um motim contra as Barbies apenas reforça a falta de identidade própria do personagem, com a falta de identidade, chega a insegurança. Ao comparar sua vida como apenas um Ken com a da Barbie Estereotipada, o antagonista projeta na protagonista, e na figura feminina como um todo, a razão de sua insegurança. Torna-se um Ken autoritário, egocêntrico e declaradamente misógino apenas por ter contato com o mundo dos humanos e visto como as coisas poderiam ser apenas sobre os Kens, anulando as Barbies. 

Após se apropriar das casas das Barbies, destruí-las e fazer lavagem cerebral em todas as bonecas-mulheres para que os sirvam, os Kens propõem uma nova constituição, que assegure um papel de superioridade oficial em relação às Barbies. Com a Barbie presidenta destituída de seu posto a cortar bife para um Ken, seria certa a vitória dos Kens, a não ser por dois detalhes: o primeiro, e mais importante, Barbies não desistiram e incentivaram o pensamento crítico em outras Barbies em transe com o discurso de submissão dos Kens, o que as fez perceber que ser subserviente a um Ken não era seu lugar. E o segundo motivo foi a própria falta de habilidade socioemocional dos Kens, já que no dia em que eles mesmos marcaram para que somente eles votassem para a  constituição criada pelos Kens ser oficializada, eles estavam ocupados brigando entre si, também por questões de identidade entre eles. Ambas são alegorias potentes sobre o papel do direito burguês na reprodução da dominação dos homens sobre as mulheres e sobre o desperdício de energia, recursos e oportunidades, para se citar o mínimo, advindo das guerras e conflitos bélicos em geral. 

O filme Barbie mostra a esperteza e a capacidade de leitura social da diretora, Greta Gerwig, aliadas à sua técnica cinematográfica, consolidando um filme que, além de ter sido  aclamado pela crítica e a segunda maior estreia cinematográfica da história no Brasil, também é uma obra que conseguiu prever no próprio enredo como o alvo das críticas, a misoginia, se comportaria diante dele. 

Sobre os autores:

Aline Reinhardt é graduanda em Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Campus Bagé, no qual atua no grupo PET-Letras desde março de 2022. É graduada em Comunicação Social – Jornalismo e é doutoranda em Letras pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Tem interesse acadêmico em Análise de Discurso.

Gilberto Lima é graduando em Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Campus Bagé. Tem interesse acadêmico em teoria Queer e estudos de gênero.

“Esta é a coluna do PET-Letras, Programa de Educação Tutorial do curso de Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa, do campus Bagé. O programa, financiado pelo FNDE/MEC, visa fornecer aos seus bolsistas uma formação ampla que contemple não apenas uma formação acadêmica qualificada como também uma formação cidadã no sentido de formar sujeitos responsáveis por seu papel social na transformação da realidade nacional. Com essa filosofia é que o PET desenvolve projetos e ações nos eixos de pesquisa, ensino e extensão. Nessa coluna, você lerá textos produzidos pelos petianos que registram suas reflexões acerca de temas gerados e debatidos a partir das ações desenvolvidas pelo grupo. Esperamos que apreciem nossa coluna. Boa leitura”.   

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