Helena, a mão e a luva: cosendo panos pra manga/ Coluna Adriano de Souza

Trecho de ‘A Mão e a Luva’. Imagem disponível em https://br.pinterest.com/pin/291397038390162990/. Acesso 18/09/2020.

Trecho de ‘A Mão e a Luva’. Imagem disponível em https://br.pinterest.com/pin/291397038390162990/. Acesso 18/09/2020.

Por Adriano de Souza

Peguei pra ler, meio assim de uma só tacada, ‘Helena’ e ‘A Mão e a Luva’ e, enquanto lia, ia me perguntando por que um jovem em idade escolar, no Brasil de 2020, leria um romance como ‘Helena’ ou ‘A mão e a luva’… Já havia lido ‘Ressurreição’ e me feito a mesma pergunta. Eu quero, então, tentar responder essa questão até o final deste texto, veremos se é possível.

‘Helena’ e ‘A mão e a luva’ são dois romances de Machado de Assis que se distanciam em vários aspectos e, talvez, se aproximem em outros. Foram publicados bem próximos historicamente: ‘A mão e a luva’ em 1874 e Helena em 1876. No primeiro, a história se nutre das relações sentimentais, afetivas e arrivistas ou interesseiras do núcleo Guiomar, baronesa (sua mãe adotiva) e dos pretendentes de Guiomar, Estevão (o romântico), Jorge (o materialista interesseiro) e Luís Alves (o que corre pelas pontas, mui amigo, mas revela-se um expert na talaricagem). Em Helena, a trama é toda construída a partir das vicissitudes que se dão entre Estácio e sua supostamente meia-irmã Helena.

‘A mão e a luva’ parece mais provocativo ao inverter a lógica de gênero dos pares românticos. Quem sofre de amor, desta vez, é o Estevão, enquanto Guiomar é racional, equilibrada e, de certa forma, contida. O mesmo não acontece em Helena, em que os lugares-comuns do romance romântico parecem estar todos aí, inclusive a questão do incesto, presente em intenção, embora não concretamente, vá lá… À parte essas diferenças, o papel de ambas as personagens é muito similar se olhado do ponto de vista do patriarcado, quer dizer, elas – que preguiça! – estão sempre condenadas ao casamento.

Mas o que tem me intrigado mesmo nessas leituras recentes que tenho feito de Machado (nosso Bruxo) é, de fato, a questão racial, ou seja, como essa questão adentra o universo da ficção. O Domício Proença Filho (referências ao fim do texto) defende categoricamente que Machado de Assis (sua literatura) é indiferente à questão do negro:

“De minha parte, entendo que a literatura machadiana é indiferente à problemática do negro e dos descendentes de negro, como ele. Mesmo os dois contos que envolvem escravos, “O caso da vara” e “Pai contra mãe”, não se centralizam na questão étnica, mas no problema do egoísmo humano e da tibieza de caráter. Os demais tipos negros ou mestiços participam como figurantes em histórias que, no nível do conteúdo manifesto ou do realismo de detalhe, constituem reflexo da realidade social que pretendem retratar.” (p. 172).

Já o Eduardo de Assis Duarte (referências ao fim do texto) defende Machado como adepto de um ponto de vista afro-identificado:

“Por trás da aparente superficialidade de muitos de seus contos e romances, como Helena, está a crítica ao discurso senhorial e à ‘branquitude’ que busca naturalizar esse discurso como verdadeiro. Machado é precursor da literatura afro-brasileira por diversas razões. Ressalte-se apenas duas, a segunda decorrente da primeira: o ponto de vista afro-identificado, não branco e não racista, apesar de toda a discrição e compostura do “caramujo”; e o fato de matar o senhor de escravos em seus romances, criando um universo ficcional que é alegoria do fim da escravidão e da decadência da classe que dela se beneficiou, ao longo de mais de 300 anos de nossa história”. (p. 149).

De minha parte, do ponto de vista de um leitor interessado, eu não consigo ver o texto machadiano como “indiferente à problemática do negro” pelo simples fato de que não se pode ser indiferente a essa questão apenas por não dar destaque a ela, por exemplo. A questão racial é um elemento estruturante das relações sociais, de modo que a própria indiferença (suposta) já é uma forma de abordar o conflito racial, naturalizando-o, no caso. O problema, talvez, seja o fato de que a questão do conflito racial, nesses romances de primeira fase, parece estar sempre associada à servidão e à submissão de personagens pretos e mestiços figurantes, apresentados geralmente sob a identidade da escravidão e, via de regra, desde o ponto de vista do colonizador. Por isso, o que me parece central aqui é a apresentação crua (talvez realista) das coordenadas políticas e dos caracteres morais de uma certa aristocracia brasileira, que – ascendendo politicamente com a Primeira República – vem também se estabelecer como norma social, padrão familiar, comportamental e norma racial, daí seu apego, enquanto classe, à branquitude como norma e ideologia.

No que pese tais considerações, também não consigo ver nessa suposta denúncia crítica da branquitude um ponto de vista afro-identificado de Machado de Assis. Repare bem, não estou dizendo que não haja tal ponto de vista, apenas digo que, se ele está aí, minha leitura ainda não consegue vê-lo. Fico também com minhas reservas de segurança (o que vem a ser o mesmo que insegurança) quanto a avalizar a presença de uma postura, por parte da obra, explicitamente crítica ao discurso senhorial e à referida branquitude. Ou seja, no final das contas, vê-se que a questão não se encerra e que há pano pra manga a mais de metro. 

Aqui retorno mais pontualmente à questão do primeiro parágrafo. A leitura de obras como ‘Helena’ e ‘A mão e a luva’ nos ajuda a formular perguntas sobre a nossa própria constituição como sociedade e nossa formação como povo brasileiro. E, só por isso, acho que já vale a leitura. Agora… Se um jovem em idade escolar em 2020 está ou não interessado em aprender a formular essas perguntas que podem aguçar nossa curiosidade de pesquisa, bem… por que não estaria? As boas questões tendem a ficar em aberto por gerações, ainda que tenhamos respostas que satisfaçam nossa ambição intelectual (sempre momentânea), as boas questões ficam a nos desafiar e a desfiar panos e mangas só para refazer a cosedura. 

Aprender a formular perguntas que inquietam o espírito e aguçam a gana investigativa significa educar-se para um convívio social em que o dissenso e o conflito são, mais do que respeitados, esperados e garantidos. Essa é a tese.

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As obras de Machado de Assim, é sempre bom lembrar, são de domínio público e estão disponíveis na internet gratuitamente. Eu li as seguintes versões:

ASSIS, Machado de. Helena. In.: ASSIS, Machado de. Todos os romances e contos consagrados: volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. [1976]

ASSIS, Machado de. A mão e a luva. In.: ASSIS, Machado de. Todos os romances e contos consagrados: volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. [1974].

Dois ensaios que relacionam questão racial e literatura brasileira, referenciados neste texto:

PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. São Paulo, Estudos Avançados, 18 (50), 2004.

DUARTE, Eduardo de Assis. O negro na literatura brasileira. Porto Alegre, Navegações, v. 6, n. 2, p. 146-153, jul/dez. 2013.

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Adriano de Souza, no mundo, é só mais um. Em seu país, não é mais do que ninguém. No Rio Grande do Sul, nasce a cada mês de julho. A Santa Maria volta sempre que precisa se reencontrar. Em Camobi, amarelou seus verdes anos. Em Bagé faz análise. Em casa, pelas cordas do violão, vai tocando a vida, às vezes desafina, outras não.

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