Ano 08 nº 121/2020 – Eurico, o Ouriço
Por Leandro de Araújo
Eurico Espinhoso é um ouriço. Um simpático ouriço-cacheiro, animalzinho da classe dos mamíferos, muito comum em quase todo território brasileiro. Passa boa parte de seu tempo no topo de uma árvore. Desce apenas quando quer se alimentar ou para atender algum outro chamado de sua fisiologia. Tem como característica mais marcante o fato de ter seu dorso, da cabeça à cauda, coberto por espinhos rígidos e pontiagudos, que se não servem como o adorno mais bonito, oferecem uma eficiente e intimidadora proteção contra predadores ou curiosos.
Existe um fato muito peculiar sobre Eurico. Mesmo a inevitabilidade de sua existência como ouriço era suficiente para que se sentisse feliz como tal. Suspirava melancolicamente quando via a elegante e colorida plumagem de alguns pássaros. Como seria legal ter a pele brilhante e sedutora como escamas das cobras ou um pelo liso e macio, tal e qual os gatos e coelhos. Ria sozinho durante estes devaneios. Quando dava por si, lá estavam os grossos e rígidos espinhos, deixando amostra apenas o focinho, os pés e as mãos.
Sua insatisfação era tão grande que, quando percebia estar sendo observado por outros animais, exibia um ângulo que deixava sua natureza original menos aparente, acreditando que desta forma não seria visto como era, mas como gostaria de ser. E assim, tristemente, ia levando sua vida, desejando o que não tinha e fingindo ser o que não era. Pedia ao bondoso deus dos ouriços que ouvisse suas preces e realizasse seu maior sonho: trocar seus duros e pontiagudos espinhos por algo mais bonito e atraente aos olhos dos demais animais da mata.
Certo dia, algo inesperado aconteceu. Espinhoso teve as esperanças renovadas e acreditou que, finalmente, suas preces haviam sido ouvidas. Corria de bico em bico a notícia de uma famosa onça, muito conhecida por seus poderes mágicos. Dizia-se que andava pelas redondezas fazendo benzeduras, poções milagrosas e realizando desejos, mesmo os mais difíceis.
Eurico Espinhoso não descansou enquanto não foi apresentado à tão abençoada criatura. Um corvo chamado Pérfido se apresentou, dizendo ser amigo da onça, e fez as honras da apresentação.
Bondosa era seu nome. Representava já ter uma certa idade. Falava mansamente, com um sorriso gentil e um olhar doce. Distribuía conselhos, beijava filhotes, cheirava flores. Parecia mancar um pouco quando andava, mas sua pelagem amarela com lindas rosetas negras fazia com que a onça realmente tivesse um ar divinal.
Ao saber do problema do ouriço, Bondosa o chamou e ouviu cada palavra, balançando afirmativamente a cabeça, sensibilizando-se com a dor do pobre mamífero espinhento. É claro que ajudaria! Contudo, para ter seu problema resolvido, Eurico deveria cumprir duas tarefas simples. Primeiro deveria comer. Comer muito! Era extremamente importante para a mágica funcionar, que Eurico devesse estar com a pança muito cheia. E assim ele fez. Passou o dia inteiro comendo. Comeu tanto que, à noite, quase não conseguia se mexer.
A segunda tarefa era dolorosa, mas Eurico estava disposto a todos os sacrifícios para realizar seu sonho. Bondosa pediu que ele ficasse completamente imóvel enquanto Pérfido, o corvo, com seu forte bico, arrancasse um a um cada espinho de seu dorso. E assim foi feito. Durante algumas horas e muitas lágrimas, Eurico Espinhoso suportou a dolorosa sessão à qual se submeteu, até ter o último espinho removido de suas costas, restando apenas uma pele lisa, suave e lindamente rosa.
Agradecido, com lágrimas nos olhos, Eurico ergueu as mãos em direção à Bondosa e, emocionado, disse que finalmente estava muito feliz consigo mesmo, que não sabia como agradecer à tão maravilhosa graça.
Bondosa, que agora abria um sorriso franco, exibindo toda uma coleção de dentes enormes e afiados, calmamente disse ao ouriço que não precisava agradecer. Bastava ficar bem quieto para que ela, agora sem o problema dos espinhos, pudesse se servir dele como uma bela e saborosa refeição. Entendendo o real objetivo da onça e a gravidade da situação, o ouriço tentou fugir, mas havia comido demais e não conseguia correr. Não teve jeito: desprotegido sem seus espinhos e letargicamente pesado, acabou virando jantar da onça, que dividiu o banquete com Pérfido, seu amigo.
Leandro de Araújo, é acadêmico de Letras Língua Portuguesa da UNIPAMPA. Atua há vinte anos como profissional de Tecnologias Educacionais. Apaixonado por escrever, é o autor do blog https://blogdoleandroaraujo.blogspot.com/ e tem um livro publicado pela Amazon chamado “A menina que podia voar e outros contos”.