Ano 09 nº 119/2021 – Até chegar aqui

Por Valéria D. Nunes

Ela ainda lembra bem, embora o tempo costume apagar algumas lembranças. 

Ela se lembra do barulho das máquinas de costura de sua mãe e de sua avó paterna, dos alfinetes de pontas coloridas e daquele montão de linhas, também coloridas. Ela se lembra do “velho do saco”, que viria buscar as crianças teimosas. Lembra claramente das marcas dos tênis na areia, deixadas pelas colegas que usavam os tênis mais lindos da escola. O dia em que vieram avisar sua mãe que sua sobrinha acabara de falecer… Sua mãe chorava compulsivamente e ela precisava fazer algo, não sabia exatamente o que, então se jogou ao chão, chorando também, mas ela não entendia. Mas lembra. Lembra-se das brincadeiras em frente à casa de seus avós. Impossível esquecer, afinal sua infância foi naquela casa, lugar que ela mais amava. As brincadeiras de esconde-esconde no cemitério, a sapata na calçada, o jogo de cinco Marias… Ela lembra. 

Ela nasceu e morou até os nove anos numa cidadezinha no interior do Rio Grande do Sul, chamada Faxinal do Soturno. Depois disso, começaram as mudanças. Santa Maria, Cachoeira do Sul, Porto Alegre e Esteio. Parece pouco? Não foram poucas as mudanças de casa e de cidade. Ao todo, quatorze. Cinco escolas. De todas as mudanças, a última foi a mais sofrida. Adolescente, cheia de amigos em Porto Alegre, morando num condomínio em frente ao colégio. Mudar-se para Esteio parecia o fim. Casas distantes, rua deserta. O choro na janela era constante. Demorou em fazer novos amigos. 

A escola era longe, precisava caminhar muito para chegar. Não havia ônibus. Seu pai tinha apenas uma moto e ela não fazia questão que seu pai a levasse. Então caminhava. As amizades foram nascendo e ela já não se sentia tão só. Estudou nesta escola porque seus pais conseguiram bolsa. Só por isso. Da sétima série até sua formatura no Curso do Magistério, fez algumas amizades, foi “garota simpatia”, matou aulas de filosofia e educação física, namorou, comeu pastelina e cachorro quente quando seus pais tinham dinheiro para lhe dar.

Formou-se professora. Prestou concurso. Passou no primeiro. Felicidade! Ah, que paixão sentia ao dar aulas. Quanto amor dava e recebia de seus alunos. Os finais de ano eram marcados por festas de encerramento e lágrimas. Era muita choradeira dos alunos e dela também. Ela conseguia estabelecer um vínculo com seus alunos que causava inveja em algumas colegas. Eram relações de afeto e respeito. Sempre foi assim. Ela diz que nasceu pra isso: Nasceu pra ser professora.

Apaixonada pelos desenhos e pinturas, artesanato e coisas diferentes, resolveu encarar a faculdade de artes visuais. Não era bem isso que ela queria, mas foi o que a prova de vestibular lhe permitiu, entre letras e artes. Difícil, tinha bolsa, mas não era integral, mesmo assim tornava-se caro. Engravidou quando cursava o final do curso. Tentou continuar. A barriga já pesava, ficava difícil caminhar longos corredores na universidade para chegar na sala de aula ou nos banheiros. Ah, e com vontade de fazer xixi, os corredores se tornavam ainda mais distantes. Acabou desistindo. 

Seus filhos cresceram. Num belo dia, surgiu a oportunidade de cursar Letras UaB, cujo Polo localizava-se em Esteio, cidade onde residia e trabalhava. Inscreveu-se para realizar a prova de seleção. Para sua surpresa, se saiu muito bem, ficando numa boa classificação. Escutou alguns comentários desnecessários com relação à sua idade, pois tinha, no início do curso, 49 anos. Estaria se formando com 53 anos. Por que estava estudando se logo iria se aposentar? Por que não vai viver a vida? O que ela queria fazendo faculdade? A resposta sempre foi tão simples! Sempre é tempo de realizar sonhos. Sempre é tempo de aprender.

Valéria D. Nunes cursa o 8º semestre de Letras – Português na Unipampa. Mora em Esteio, mesmo município onde trabalhou na educação durante 30 anos. 

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