Ano 10 nº 058/2022 – As bolachas

Por Eduarda Manzke

Fonte: 
https://pixabay.com/pt/photos/m%c3%a3o-humano-mulher-cresceu-m%c3%a3os-3666974/ (banco de imagens)

Dona Rosa era uma mulher de hábitos. 

Morava perto da fronteira mas raramente cruzava, somente para visitar os filhos que moravam no Brasil. Tirando essas ocasiões, era religiosamente fiel a sua rotina. 

Levantava às seis, dava bom dia à vizinha de muro. Rezava. Ia até a padaria e comprava um pacote de bolachas, passava em casa um café e comia as bolachas junto ao muro, conversando com a vizinha. Limpava a casa, cozinhava o almoço. Costurava, atendia encomendas do bairro todo. Via a novela, rezava um pouco mais pra não perder o hábito, assistia ao jornal e a novela. Reclamava do marido, ria com ele também. 

Naquela época não sobravam bolachas. Os trezentos gramas do dia iam no café da manhã, no café da tarde, iam pros filhos da vizinha. O problema começou quando o Alzheimer passou a interferir na sagrada rotina. Não foi de um dia pro outro. Começou quando deixou de conversar com a vizinha no muro porque não se lembrou dela. Ou então confundia a manhã daquele dia com a do dia anterior.

Quando conversava com a vizinha, repetia coisas que já haviam dito ou comentava sobre pessoas que a muito já tinham partido, pessoas que nem mesmo a vizinha conhecia. 

Passou a rezar duas vezes mais, ou então vez nenhuma. Atrasava as encomendas de costura porque não lembrava onde guardava a linha e a agulha, até que as encomendas pararam de chegar, e aí passou a sentir falta, embora não soubesse do quê. Sentia um vazio no meio do dia, seus dedos queriam se mover mas não sabiam porquê. Na hora da novela não se lembrava mais daquela mocinha, daquela vilã. Confundia as tramas, tinha certeza de que não era aquela novela que estava passando, que era uma outra, de anos atrás. Teimava com os filhos. 

Outros dias, acordava com dezoito anos de novo. Falava no pai, que estava demorando pra voltar do trabalho. Falava em seu marido, mas não o chamava de marido, mas sim de noivo, e sonhava com o enxoval. Os médicos desacreditaram a família. Era uma situação em que não podiam fazer nada. 

O problema mesmo eram as bolachas. As bolachas permaneceram mesmo nos dias em que ela esquecia do café, da vizinha, da costura e da novela. Uma, duas, três vezes no dia comprava trezentos gramas de bolacha, feita ali mesmo na padaria, crocante e esfarelenta na medida certa. Nos primeiros dias, a atendente pensou que ela estivesse com visita. De repente, os netos vieram. Mas dois dias depois ela apareceu mais duas vezes. 

A atendente estranhou. Tudo bem, as bolachas eram boas, vendiam bem. Sim, era normal que Dona Rosa comprasse um pacote pequeno por dia. Mas por que comprar duas, três, até quatro vezes por dia? E porque não comprar logo a quantidade que precisava? 

Na quinta vez que aconteceu, a atendente não deixou. Viu Dona Rosa chegando pela terceira vez naquela tarde e disse “não posso mais lhe vender as bolachas, Dona Rosa”. Tentou explicar porque, mas ela não entendia. Confusão, choro, gritaria, chamaram até a vizinha, que era enfermeira, para acudir. 

No dia seguinte, o marido apareceu na padaria. Explicou o problema, disse que estava tudo bem, que podia vender as bolachas. A atendente ficou com pena. E depois ficou com raiva do esculacho que tomou do dono da padaria. Disse que vendesse todo o estoque de bolachas se precisasse. 

Mais de uma vez, a atendente botava mais do que trezentas gramas. Afinal, Dona Rosa não reparava, e o valor ficava pendurado na conta do marido, e os tempos eram difíceis, talvez se as vendas melhorassem, ela ganharia um aumento. 

Na casa de Dona Rosa quase não havia mais espaço para tanta bolacha. Os armários da cozinha, a mesa, a geladeira, as cadeiras. O marido começou a guardar na estante da sala, nos armários de roupa. Quando a filha veio visitar, se espantou com o cheiro de mofo na casa, que ardia no nariz. O neto mais velho sugeriu

distribuir na vizinhança as bolachas. Assim, ganharam bolachas a vizinha do lado, a de trás, a da rua de baixo. Ganharam bolachas o carteiro, o vendedor ambulante, as crianças da rua levaram dez sacos para casa de vez. Algumas bolachas inclusive voltaram para a padaria, através do rapaz da limpeza, que levava um saco para almoçar. A atendente observava do balcão. 

Mas nem assim o problema sumiu. Ninguém consegue comer tantas bolachas a tempo. Foi então que o genro encheu o porta-malas do carro, cruzou a fronteira e passou a distribuir as bolachas entre os colegas de trabalho. Primeiro, só para dois deles. A notícia se espalhou e agora cinco levavam as bolachas, depois mais dois. Agora, as bolachas de Dona Rosa chegavam até o Brasil pela fronteira do Uruguai e de lá se distribuíam entre duas cidades, uma porção de bairros. Viajavam dentro de potes de plástico até pátios de escolas onde eram divididas entre crianças na hora do recreio, até escritórios onde derramavam farelos sobre teclados de computador. Passavam por triagens: em uma determinada semana, o padeiro errou a receita e as bolachas vieram muito grossas, muito salgadas. Todos reclamaram, exceto Dona Rosa, para quem já não fazia diferença. 

Às vezes a filha contava a ela as histórias de suas bolachas. Dona Rosa ouvia como se ela estivesse falando de outras bolachas, de outra pessoa. 

O que será que aquelas bolachas significavam para ela? Não tem como saber. Em última instância, as bolachas são o que fazem dela uma pessoa. Elas ligam Dona Rosa ao mundo, movimentam as pessoas ao seu redor. O padeiro, a atendente, o marido, os filhos, os genros e as noras, para não falar na rede de pessoas que a conhecem através daqueles pacotes transparentes amarrados por um nó. 

As bolachas são um problema com solução. São compreensíveis, podem ser analisadas, sistematizadas e distribuídas. Dona Rosa, não. Para ela não há expectativa, não há saída. Na equação das bolachas, ela é apenas o canal de comunicação. 

E quando ela se for, também irão as bolachas.

Eduarda Manzke tem 20 anos e é graduanda de Letras – Português na Unipampa, campus Bagé e Técnica em informática pelo IFSul, campus Bagé. É escritora amadora e vencedora do II Concurso Literário do PET-Letras Bagé.

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