Ao vencedor, as batatas?

Por Adriano de Souza

 

Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas. (trecho do romance Quincas Borba de Machado de Assis, p. 218).

Quincas Borba aparece na ficção de Machado de Assis pela primeira vez no Romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, quando Brás – de quem Quincas fora colega de escola e, posteriormente, na vida adulta, amigo com diferentes graus de proximidade – relembra um episódio envolvendo uma peraltice de Quincas com um certo professor.

Depois desse episódio, encontram-se outras vezes mais: numa das vezes, Cubas encontra Quincas perambulando miseravelmente pela rua e, depois disso, dá-se lá uma reviravolta que passo a descrever. Quincas, ainda abandonado à própria sorte, acabara de desenvolver um sistema filosófico, um troço assim meio cabeção e complexo de explicar, mas que tem a ver com a máxima “ao vencedor, as batatas”. Nas palavras do próprio filósofo:

 

[U]m novo sistema de filosofia, que não só explica e descreve a origem e a consumação das coisas, como faz dar um grande passo adiante de Zenon e Sêneca, cujo estoicismo era um verdadeiro brinco de crianças ao pé da minha receita moral. E singularmente espantoso este meu sistema; retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade, enche de imensa glória o nosso país. Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas, princípio das coisas. Minha primeira ideia revelava uma grande enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta. E com certeza exprimia menos. Verá, meu caro Brás Cubas, verá que é deveras um monumento; e se alguma coisa há que possa fazer-me esquecer as amarguras da vida, é o gosto de haver enfim apanhado a verdade e a felicidade. Ei-las na minha mão, essas duas esquivas; após tantos séculos de lutas, pesquisas, descobertas, sistemas e quedas, ei-las nas mãos do homem.” (do romance Memórias Póstumas de D. Casmurro, p. 147). 

Daí em diante passam, então, a conviver muito amistosamente Brás Cubas e Quincas. Até que, precisamente no capítulo 159 (de Memórias Póstumas), o filósofo – que já vinha apresentando sinais embaçados de saúde mental –, após seis meses em Minas, retorna ao Rio em estado de semidemência, vindo a falecer logo em seguida a esse retorno. 

O curioso é que se se quer conhecer a caracterização do personagem Quincas Borba, o romance a ser lido deve ser Memórias Póstumas de Brás Cubas, pois em Quincas Borba o personagem que dá nome ao romance é um figurante, cujo cachorro, que também se chama Quincas Borba, esse sim está presente ao longo da narrativa e volta e meia chama a atenção para si, ainda que bem discretamente. Quincas Borba é um romance que trata, sobretudo, das vicissitudes de Rubião, sujeito de vida simples, amigo de Quincas, de quem herdara sua pequena fortuna (sim, Quincas chega a experimentar a riqueza material e a glória advindas, supostamente, de seu constructo filosófico) e, por isso, vê sua sorte mudar do dia para noite, pois até ele (Rubião) se surpreende quando de descobre herdeiro de Quincas.

Digressão feita, voltemos às batatas. Consta que há qualquer relação entre Humanitas de Quincas Borba e a teoria da seleção natural de Charles Darwin, eu não saberia ir muito além nessa chave de leitura. Me interessou, quando li Quincas, foi divagar um pouco sobre o comportamento moral dessa tribo que – para satisfazer uma necessidade prática e material e, talvez, guiada pelo princípio da manutenção da espécie – extermina a outra tribo e consome, então, as batatas. Ao serem exaltados, os vencedores perpetuam, então, uma norma diante de problemas práticos, ou seja, passa-se a valer um juízo sobre um problema prático:  sempre que houver pouco alimento ou escassez de recursos necessários à vida, justifica-se que um grupo se sobreponha a outro, eliminando-o, escravizando-o, subjugando-o etc. Cria-se aí uma ética da indiferença: “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

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Imagem disponível em https://www.moneytimes.com.br/pre-market-ao-vencedor-as-batatas/

Acesso em 15/03/2021.

Agora… Pensemos: e se as tribos famintas em vez de se paulearem, disputando o acesso ao escasso alimento que capacitaria o seleto grupo vencedor a acessar a plantação que, então, saciaria em abundância tal grupo vencedor, se essas duas tribos sentassem em círculo, elegessem alguns representantes que, alimentados, fariam a travessia até a outra plantação, construiriam um meio de armazenar e transportar uma grande quantidade de batatas e trariam essa quantidade para distribuir entre o coletivo, não teríamos aí, nesse comportamento moral pautado pela manutenção da vida em sua pluralidade, coletividade e diversidade, uma outra ética? Uma ética da diferença na coletividade, digamos.

Enfim, ao vencedor, as batatas? É a pergunta que me faço a partir da asserção de Quincas Borba. Creio que respondo: depende. Se a coroa de louros que orna a fronte vencedora se pinta pela ética da indiferença, triunfo maior, decerto, há de haver no amargo gosto da derrota.

 

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. In.: ASSIS, Machado de. Todos os romances e contos consagrados: volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. [1886-1891].

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Adriano de Souza, no mundo, é só mais um. Em seu país, não é mais do que ninguém. No Rio Grande do Sul, nasce a cada mês de julho. A Santa Maria volta sempre que precisa se reencontrar. Em Camobi, amarelou seus verdes anos. Em Bagé faz análise. Em casa, pelas cordas do violão, vai tocando a vida, às vezes desafina, outras não.

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