Ano 08 nº 075/2020 – Antagôncio, O galo
Era um típico galinheiro. Com todas as coisas que um galinheiro que se preze tinha, a começar as galinhas. Várias galinhas de muitos tamanhos e cores diferentes. Brancas, pretas, emplumadas, depenadas. Todas andando para lá e para cá, fazendo aquilo que as galinhas faziam muito bem: cacarejando, comendo, ciscando e pondo ovos.
Neste galinheiro também havia um galo.
Grande e forte, Sátrapa era o responsável por colocar ordem no galinheiro. Controlava desde a posição das galinhas nos poleiros, até a divisão justa do milho – afinal de contas, tinha de garantir que galinhas que punham mais ovos mereciam comer mais e melhor. Muito controlador, o poderoso galo determinava a hora de comer, dormir e pôr ovos. E quem ousaria desafiar o cara que era responsável até mesmo por fazer o sol nascer todos os dias? Ninguém, óbvio. Algumas penosas até pareciam admirá-lo, mas na verdade o temiam.
Sátrapa era a lei do galinheiro. Acreditava piamente na missão que recebera do granjeiro, de manter a ordem e a harmonia entre as aves e garantir a produtividade de ovos. Fiava-se com tanta intensidade e confiança na sua capacidade como galo dominante, que não fazia outra coisa durante o dia senão andar soberbamente por entre as galinhas, batendo asas aqui e cantando acolá.
Contudo, foi justamente esta convicção em seu poder de liderança, e uma certa arrogância típica dos galos, que fez com que sequer percebesse quando o granjeiro colocou no galinheiro, entre as galinhas, um outro galo.
Antagôncio não era um galo grande, na verdade parecia ser até menor que uma galinha. Também não era muito bonito ou forte. Faltava algumas penas em alguns lugares evidentes e andava de forma um tanto desengonçada. Não cantava muito bem e não tinha pretensões de acordar nem um pinto, que dirá o sol. Invisível entre as galinhas, permaneceu um bom tempo sem ser notado por Sátrapa, que se preocupava muito mais em exibir as brilhantes penas e a crista colorida. Antagôncio, então desfrutando este anonimato momentâneo, aproveitou para observar o galinheiro. Não como o grande Sátrapa, mas de baixo para cima, de dentro para fora.
O novato achou muito estranho algumas coisas que aconteciam no galinheiro. Quando o grande e poderoso Sátrapa se deu por conta de sua presença, já o encontrou ciscando de galinha em galinha, querendo entender algumas coisas.
Primeiramente, Antagôncio achou bizarra a distribuição de milho feita pelo galo líder. Por que as galinhas que põem mais ovos podem comer mais e melhor? Se elas já põem mais ovos, o certo não seria distribuir mais comida justamente para aquelas que não produzem tanto terem as mesmas condições de produção? A tática de Sátrapa acabou dividindo as galinhas entre algumas poucas que comem bem e põem muitos ovos, e a grande maioria, que não produz tanto justamente por estar mal alimentada.
Outro fato que chamou a atenção de Antagôncio foi a posição das aves no poleiro. Era um poleiro triangular, com travessas de madeira onde as galinhas dormiam à noite. Sátrapa, claro, dormia no ponto mais alto, de onde podia observar tudo. Logo abaixo dele algumas poucas galinhas campeãs em postura de ovos. Em seguida, aquelas que produziam um pouco menos. E assim sucessivamente, até chegar na base, onde ficavam as galinhas que quase não punham ovos. Olhando aquela pirâmide galinácea, Antagôncio percebeu que durante a noite, enquanto dormiam, as aves iam fazendo suas necessidades umas sobre as outras. Sátrapa, como estava na ponta, fazia nas galinhas que estavam no nível logo abaixo. Estas, por sua vez, faziam nas próximas e assim por diante, até chegar nas pobres galinhas da base, que recebiam toda noite um banho de caca, vindo de todo poleiro. Para Antagôncio, estava claro que as galinhas do nível inferior, sujas e doentes, ficavam tão tristes que não tinham a menor vontade de pôr ovos e, por esse motivo mesmo, ficavam sempre naquela posição ingrata.
Achando injusta esta distribuição, o galo recém chegado chamou as galinhas para questionar porque não faziam um rodízio na posição do poleiro, ou então porque não colocavam o poleiro em outra posição, onde nenhuma galinha precisasse ficar sob as demais.
Evidentemente Sátrapa começou a ficar incomodado com a presença do bisbilhoteiro visitante. Não que o pequeno e feio emplumado pudesse ofuscar sua liderança, mas pelo fato de que as galinhas já começavam a questionar suas decisões. Então, primeiro tentou silenciá-lo com muito barulho, batendo as asas e cantando de galo por todo lado. Mas o escarcéu já não se mostrava suficiente, pois agora as galinhas começavam a se organizar em pequenos grupos, e olhavam com desconfiança para o grandão, que já tentava uma nova estratégia para permanecer no comando.
Mesmo reunindo as galinhas privilegiadas, melhores alimentadas e limpas, colocando-as ao seu redor para tentar ser mais persuasivo diante das demais, não conseguia sua atenção. Mais e mais Antagôncio despertava o interesse das galinhas menos extraordinárias, que já não se limitavam a ouvir suas perguntas, mas que agora começavam a questionar também.
Por fim, Sátrapa desesperado ameaçou Antagôncio, dizendo que iria prendê-lo em uma gaiola ou então colocá-lo para fora daquele galinheiro. Ele que procurasse outro, onde suas ideias questionadoras fossem aceitas como normais. Ao perceber que não havia mais como desfazer o estrago causado pelo galo questionador, Sátrapa faz-se valer de sua força e tamanho avantajado e, inicialmente, prende Antagôncio, acusando-o de tentar subverter a ordem e a harmonia no terreiro. Em seguida, o expulsa do galinheiro, cumprindo seu papel de líder.
Era tarde demais. As galinhas já não aceitavam os desmandos de Sátrapa. Em nome do querido Antagôncio, passaram a exigir que todas as galinhas recebessem a mesma quantidade de milho e dormissem em um poleiro que não distinguisse pela cor das penas ou quantidade de ovos.
Furioso e transtornado, Sátrapa sai desasado do galinheiro. Na manhã seguinte, para surpresa de todas as galinhas, o sol surge no horizonte, lindo e brilhante, sem que para isto seja necessária a cantoria do grande galo.
Às aves que ficaram, uma única certeza: Sátrapa nunca mais! Ele não!