Ano 12 Nº 021/2024 – Saindo do armário da neurodivergência

Por Willians Barbosa

‘’A psicologia nunca poderá dizer a verdade sobre a loucura, pois é a loucura
que detém a verdade da psicologia.’’ – Michel Foucault

Não foi apenas do armário da homossexualidade que precisei sair – o armário da neurodivergência também tive que abrir pra sair e viver uma experiência mais plena na sociedade em que vivemos. E sair deste segundo armário foi igualmente desafiador, tanto quanto aquele primeiro. Mas, o que exatamente seria sair desse armário? 

Bem, primeiro precisamos considerar o que é a neurodivergência. Em termos simples, ela se refere à condição de indivíduos cujo funcionamento cerebral se difere daquele considerado padrão, no caso, o das pessoas neurotípicas. Ela pode se referir a uma série de transtornos, como o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e o Transtorno do Déficit da Atenção e Hiperatividade (TDAH). Embora a depressão, por ser considerada uma condição de saúde mental, não se enquadre conceitualmente no que é a neurodivergência, eu gostaria de incluí-la na discussão, uma vez que as pessoas depressivas têm experiências similares àquelas das pessoas neurodivergentes no que tange ao estigma sofrido na coletividade. 

Pois bem, ainda que, desde que eu me entendo por gente, eu me veja diferente do padrão, eu tive, ainda assim, que passar pelo processo de sair do armário. Este processo inclui etapas, como as de me aceitar, de me entender, de assimilar que minhas experiências sempre serão diferentes das pessoas neurotípicas, de estudar as condições de cada transtorno diagnosticado, bem como a de me proclamar uma pessoa neurodivergente em público, sempre que há condições para esse ‘’assumir-se’’. 

As reações de cada pessoa para as quais assumimos nossa condição vão construindo nossa experiência subjetiva, bem como nos ensinam qual a melhor forma de tocar e de manter o assunto. Por exemplo: qual o sentido de jogar em uma conversa aleatória nossa condição de neurodivergente? Sem um propósito maior,  que seria o de desmistificar o transtorno ou de darmos subsídios para que o outro nos compreenda melhor. O que esperamos que o outro faça com essa informação, quando a jogamos? Qual o impacto em nossa vida quando assumimos o que somos? 

Tal qual quando falamos em sexualidade, em que sentimos um notório alívio quando dizemos sem meias palavras quem somos, no que se diz respeito a transtornos mentais, essa sensação é similar. Sentimos o coração ficar mais leve tão logo depois de falar de nossas condições. Criamos espaço para que o outro compreenda nossas motivações e nossas limitações, pois elas são inerentes à condição humana, e quanto mais naturalmente falarmos de nossas vulnerabilidades, mais humanos nos tornamos. 

E isso beneficia não só os neurodivergentes, mas também pessoas que sofrem de males contemporâneos, como a depressão e a ansiedade. Pensando nesses problemas, apontamos para possíveis soluções na sociedade, como, por

exemplo, a escala de trabalho 4×3, mais flexível para nossos tempos, uma escola e uma universidade com um caráter menos competitivo, uma economia menos predatória em um sentido mais macro. Dialogando sobre todos esses desajustes e reajustes, e primando pela empatia, os depressivos e os ansiosos podem colocar em xeque nessas discussões suas questões, objetivando uma sociedade mais salutar. 

No entanto, há diferenças consideráveis entre essas doenças e transtornos entre si e suas relações com a sociedade. Enquanto a ansiedade tem um caráter social bem demarcado, causada fortemente por pressões típicas da contemporaneidade que influenciam a nossa relação per si. A depressão é desencadeada por uma interação complexa entre fatores orgânicos e sociais, outros transtornos são menos sociais e é aqui que entra em cena os ‘’neurodivergentes’’: indivíduos diagnosticados com TEA, TDAH, TOC, Transtorno Bipolar, Esquizofrenia. Para estes, aqueles reajustes na sociedade importam menos, sendo mais preponderante a preocupação com o incentivo à ciência e a uma mudança na sociedade em nível mais humano do que social. 

Ainda que, utopicamente, alterássemos o funcionamento da sociedade e reduzíssemos ao mínimo a incidência de depressão e ansiedade, uma parcela mínima dos indivíduos continuaria apresentando desequilíbrios químicos no cérebro ou em sua estrutura. Para essa parcela dos indivíduos, ‘’sair do armário’’ pode ser extremamente desafiador, primeiramente pelo estigma associado a doenças mentais. Estigma esse que pode até mesmo inviabilizar a procura por uma vaga de emprego ou por relacionamentos afetivos. 

Claro que é uma abordagem perigosa comparar transtornos e querer colocar este ou aquele como o que mais se depara com obstáculos na sociedade. Todo transtorno, como cada pessoa, é único. Depressão e ansiedade são problemas sérios que precisam ser encarados e debatidos. No mais, cada um dos demais transtornos citados neste texto tem suas especificidades e, falando a partir de uma visão particular, posso notar algumas diferenças na forma como se trata cada um deles. 

A esquizofrenia, por exemplo, ainda que eu ache interessantíssima, tanto do ponto de vista científico quanto do ponto de vista de portador, é o transtorno que parece existir maior estigma. Dizer em público ter ou já ter tido delírios ou alucinações, auditivas ou visuais, é um ato que demanda coragem, devido a, uma vez dito, mudar totalmente a visão que os outros têm de você. Um dia desses mesmo, uma pessoa me confidenciou que ela ‘’ouve vozes’’, mas que prefere acreditar que ‘’são espíritos do que descobrir que tem esquizofrenia’’. Ou seja, os sintomas positivos da esquizofrenia, ao invés de serem esclarecidos, são mistificados, o que abre a possibilidade da doença se agravar com o decorrer do tempo, uma vez ser essa uma condição crônica. As pessoas com esquizofrenia ainda são suscetíveis a muitas outras situações, como a tendência maior ao tabagismo e ao suicídio, por exemplo. 

O único exemplo positivo, ainda que paradoxal, com que me deparei na grande mídia sobre o assunto, foi o episódio da tiktoker Vanessa Lopes que, ao participar do Big Brother Brasil 24, teve um episódio psicótico agudo. Por cerca de uns cinco dias, o público pôde notar a evolução do quadro até culminar com sua desistência do programa. 

Já em relação aos demais transtornos, percebo um certo romantismo que paira sobre eles, e também uma maior prevalência ao autodiagnóstico, facilitado pelo vasto material difundido pelas redes sociais. É relativamente fácil encontrar pessoas que se dizem ter autismo nível 1, TDAH ou TOC, por exemplo, sem nunca terem consultado um psiquiatra. Reside aí o perigo do rico material sobre o assunto nas redes, que não substitui em nada o atendimento personalizado por profissionais da saúde mental, uma vez que cada caso particular é único e precisa ser feita uma investigação acerca dele. Sem contar os casos de transtornos que se combinam com outros, formando uma interação realmente única do ponto de vista clínico. 

Como já citado, a saúde mental é algo que precisa ser desmistificado. Muita gente é obrigada a se manter à margem da sociedade devido a transtornos ou distúrbios mentais, que dificultam ou anulam a inserção efetiva em seu meio. Cabe a nós, inseridos no meio acadêmico, abrir espaços para a discussão sobre o assunto e manter essas chancelas abertas para que cada vez mais informação flua, bem como relatos pessoais, igualmente válidos.

Willians Barbosa é jornalista e acadêmico do Curso de Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa. williansjardim48@gmail.com


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