Ano 12 Nº 020/2024 – Relatos de um (não) leitor…

Por Mario Sérgio Moreira Garcia

Sou Mario Garcia, graduando do curso de Letras – Línguas Adicionais: Inglês, Espanhol e suas Respectivas Literaturas pela Universidade Federal do Pampa, Unipampa, campus Bagé-RS e compartilho aqui meu relato sobre a importância da literatura e leitura, não apenas do cânone ou alta cultura, mas em geral. 

Acredito não poder começar este relato de outra forma, se não expondo que, durante quase toda minha vida acadêmica, incluindo anos iniciais da graduação, acreditei nunca ter tido contato com a literatura, chegando ao ponto de, por diversas vezes, declarar que “não era leitor”. Sempre percebi a feição de espanto de alguns professores toda vez que proferia esta afirmação, dado que estes conheciam meu histórico de proximidade com histórias em quadrinhos, mangás, livros de ficção e videogames. O grande ponto é que, mesmo com mais de 400 obras divididas entre mangás, gibis, HQs, revistas e livros em minha estante, até grande parte de minha vida, o valor ou relevância dessas obras eram completamente negados, eram, e ainda são, por algumas pessoas, tidas como “leituras rasas”, “ignorantes” ou que não agregam “nenhum sentido/valor” enquanto meios formadores de seres pensantes por não pertencerem ao cânone literário. 

Refletindo sobre estas questões, retorno ao meu tempo de infância, ou melhor dizendo, fase inicial de vida. Com cerca de  quatro anos de idade, já era um ávido leitor, habilidade que desenvolvi juntamente com o desenho. Por ser filho de mãe solteira, precisava passar o dia com minha avó enquanto minha mãe estava no trabalho e, depois que os programas infantis acabavam e eu já tinha desenhado bastante do que havia visto, procurava nas tralhas escondidas no porão, algo para me divertir, o que acabava sendo livros didáticos, doados por uma ex-patroa e amiga da minha avó. Meus preferidos eram os livros de ciências/biologia e inglês, acredito que esse contato desde cedo com a leitura me ajudou muito a desenvolver minhas capacidades cognitivas, além, claro, de despertar a minha curiosidade e me divertir bastante. Inclusive, segundo minha mãe, me deixando semi-alfabetizado com cinco anos, o que a levou a me colocar na escola, depois de muito implorar. Sempre gostei muito de ler, devorava os livros didáticos da escola, além de vários outros livros infantis, revistas e gibis que encontrava por aí, porém quando chegamos nos gêneros e escolas literárias nas aulas de português, e logo após literatura, o pequeno Mario leitor “deixou de existir”. O hábito da leitura ou de comprar livros nunca foi algo regular na minha família. Uma família periférica, de classe média-baixa, que se preocupava em ter comida na mesa, um teto sobre a cabeça e energia elétrica, cujos membros possuíam pouca ou nenhuma educação escolar. Além de não poder se dar ao luxo, comprar livros não era algo que passava na cabeça da minha mãe ou dos meus avós, sentar, ou melhor, tirar um tempo do dia para lê-los, então, era algo totalmente infundado. Logo, enquanto todas as outras crianças compartilhavam suas histórias e momentos com livros, ou mais tarde, quando os colegas debatiam acerca de suas leituras, eu me mantinha quieto, pois, naquele momento, acreditava não possuir nada para acrescentar, já que “nunca lia nada”.

Essa situação se intensificou muito no Ensino Médio, onde estávamos nas etapas finais de “nos formar cidadãos”, então precisaríamos preencher nossas mentes com boa cultura, os clássicos literários, o cânone, nada desses “gibis japoneses em preto e branco de Naruto e Dragonball”. 

Me lembro muito bem de várias situações onde meus amigos e eu tivemos nossos mangás tomados de nossas mãos por professores, com ameaças de nunca mais vermos “aquelas coisas” na vida, ou do olhar de recriminação do professor de literatura toda vez que falava que não costumava comprar/ler livros. O desapontamento era maior ainda quando eu demonstrava total ignorância ao não conhecer os grandes nomes, e suas obras, da literatura brasileira como Machado de Assis, Lima Barreto ou Clarice Lispector, como se isso fosse exclusivamente culpa minha. Acredito que a falta de costume, somada com a obrigatoriedade de ler essas obras, além do fato de a maioria delas não se alinhar com o que eu costumava consumir na época, me fez realmente acreditar que não gostava de ler, ou de literatura. Se bem me lembro, nas duas vezes que cursei o terceiro ano do Ensino Médio, a única obra que me chamou atenção foi “O negro Bonifácio” de Simões Lopes Neto, um conto gauchesco que trazia a trama de um negro galanteador, valente e destemido, com muita ação e humor, algo que me cativou bastante. 

Essa invalidação de todo o meu histórico como leitor se intensificou ainda mais nos primeiros anos do Ensino Superior, pois além da total desqualificação das obras que li, seja por parte de alguns professores, quanto por parte dos colegas, se somava o estigma de que tais obras eram feitas para crianças e nem sequer poderiam ser consideradas literatura, geralmente acompanhado de comentários diminutivos. 

Me lembro da extrema dificuldade em validar alguma observação minha em sala de aula, pois sempre partiam do conceito geral de que “eu não lia, logo, minha opinião era rasa e sem validade”. O que se alinha, de certa forma, com uma das concepções de linguagem que estudamos, mais especificamente, a do método-tradicional que vê a língua como “a expressão do pensamento”, ignorando as funções comunicativas e interacionais. Falar bem é um sinal de que o sujeito pensa bem e, para desenvolver um bom pensamento crítico ele deve consumir apenas a boa cultura, os cânones ou qualquer mídia que o leve a um caminho de iluminação intelectual. 

Entretanto, como comentado diversas vezes durante as classes do componente curricular Ensino de Literaturas de Línguas Adicionais, uma das várias funções da literatura é “possibilitar que o indivíduo vivencie situações, possibilitando uma reflexão e preparação para os problemas reais”, o que quero dizer com isto é, mesmo uma literatura fantástica ou ficcional, como Harry Potter ou um quadrinho japonês como Naruto nos possibilita desenvolvermos pensamento crítico, posicionamento e opiniões frente às mais diversas situações da vida humana. 

Gosto muito de usar como exemplo uma atividade de leitura que tive em outra disciplina, onde li o romance “Naruto – A história secreta de Sakura: Contemplações de amor na brisa de primavera”, um romance focado em Sakura Haruno, uma das protagonistas da obra, em seus diversos enfrentamentos e superações enquanto ninja médica e mulher. O plot gira em torno de Sakura lidando com sua vida profissional com a idealização, e implementação em outras vilas ninjas, de seu projeto de uma clínica de acompanhamento psicológico para crianças vítimas da Quarta Grande Guerra Ninja. Enquanto tem seus sentimentos testados quando um suposto Sasuke Uchiha, seu interesse amoroso durante toda a obra, é dito ter sido visto em diversas outras vilas planejando ataques terroristas. O que seria extremamente fácil de acreditar, devido ao seu histórico pregresso, porém, no fim, nos é revelado que não passava de um esquema do “vilão” que havia desenvolvido uma droga que simulava tanto aparência, quanto poderes de outras pessoas e que queria utilizar Sakura como isca para atrair Sasuke e extrair ainda mais matéria-prima. 

Eu sempre utilizo o termo vilão entre aspas neste contexto, porque nos é revelado também que Kido, o “vilão”, só se tornou uma pessoa gananciosa e inescrupulosa por conta de um trauma de infância envolvendo a morte de seu pai, que preferiu pagar os estudos do filho a cuidar de sua própria saúde. Em resumo, essa “história boba e infantil”, nos permite refletir sobre, pelo menos, três assuntos diferentes: O empoderamento de Sakura como mulher, uma vez que ela costumava sempre ser salva por seus companheiros de equipe e desta vez ela própria se soltou do cativeiro, após ser sequestrada, e derrotou o inimigo, muito mais forte que ela fisicamente, sozinha e usando a inteligência; A importância de, não só permitir que as pessoas se desconstruam, como também acreditar realmente que elas podem mudar, pois mesmo tendo sido um terrorista em momentos passados, e com todas as provas apontando que essa fase havia voltado, nenhum dos amigos de Sasuke acreditaram que fosse realmente ele o terrorista e, finalmente; A importância da saúde mental, especialmente o tratamento de traumas, e que tipo de adulto nos tornamos quando estes são negligenciados.

Em suma, creio que os clássicos literários são sim importantes e que não podemos nos prender simplesmente a leituras de redes sociais ou quadrinhos, porém, negar todo o potencial de reflexão que estas outras formas de literatura podem nos propiciar e obrigar qualquer pessoa a começar sua jornada como leitor direto com o cânone é, no mínimo, prejudicial ao desenvolvimento desse ser pensante. Além de, elitizar a literatura ser uma piada de muito mal gosto em minha opinião, excluindo aqueles que, não por escolha própria, não possuem o hábito da leitura, sobretudo dos clássicos, como um hábito recorrente. Enquanto futuros docentes, precisamos estar cientes destas particularidades e procurar valorizar os conhecimentos e reflexões provenientes das mais diversas literaturas, mídias e formas de arte.

Mario Garcia, licenciando do curso de Letras – Língua Adicionais.

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