Ano 12 Nº 014/2024 – El hilo  de las tijeras

Por Mirela Ribeiro Meira

Realizador: David Marcial Valverdi

Produção Executiva: Mario Durrieu

Roteiro: David Valverdi

Desenho de som: Joel Nacud

Edição: David Valverdi

Música: Miguel Moreno, Joseba Beristain

Elenco: Maximiliano Zwenger, Maximiliano Encina, David Valverdi, Fernando Belziti, Hernán Rocca e Maria Serrano

Produção: 996 FILMS

Categoria: Documentário/animação

Duração: 69 min

País de Origem: Argentina

Ano: 2023

David (esquerda)  num bate-papo no Festival de Cinema, após sessão do filme, em Santa Thereza, Bagé,RS.

Fotos: acervo da autora,2024.

Relato aqui impressões acerca desse trabalho belíssimo e assustadoramente honesto exibido no Festival de Cinema da Fronteira, em Bagé, RS, Brasil. Agraciado com o Prêmio Acorde/Music Library – Málaga WiP (España, 2023) e Prêmio de Postproducción – ABC BAFICI (Argentina, 2021), adquire relevância pelo diálogo pós assistência com seu realizador, proporcionado pelo Festival no Sul do país. Esse fato enriqueceu a experiência com os meandros do processo, a (re) afirmação de algumas percepções e as dificuldades extremas de sua realização, entre outros.

         O filme relata a história de um “trisal” e sua busca de entendimento, na complexidade que envolve qualquer relação de convivência. Até aí, nada demais se fosse nos dias de hoje. Só que são os anos 80 e o trisal é gay. Além disso, se passa no subúrbio de uma Buenos Aires saindo de uma ditadura brutal e de uma quantidade de preconceito, rejeição, vergonha, peso e complexidade que cerca relações desse tipo ainda hoje. A história relatada nessa película, desses três trabalhadores, levou nove anos em construção, segundo conversas com o diretor, ainda continua, pois que os três ainda estão juntos.

A partir de imagens de sua infância no salão de sua avó- e de depoimentos desta-, nos subúrbios de Buenos Aires, seu realizador reconstrói espaços/tempos/relações que atravessam os anos 80/90 até hoje. Valverdi, de filmadora em punho, capta imagens do cotidiano desses seres comuns que se unem amorosamente e resolvem morar juntos em um espaço exíguo. A narrativa é lenta, lentíssima, o que fornece ao espectador uma sensação de peso, de uma situação que se arrasta, com suas idas e vindas, seus choques, suas rupturas, suas alegrias, seus sabores e dissabores: a roupa suja, o café, os sonhos de uma vida melhor. Afinal, como diz Caetano, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Entre dores e delícias, a narrativa avança.

As imagens intercalam cenas banais com cenas extraordinárias, captadas com uma sensibilidade brutal, sofrida, humana, demasiadamente humana, produzindo um caleidoscópio de corpos que, unidos, vibram de forma assustadoramente conhecida pelos que lutam pela redução das desigualdades e direitos das minorias. A exclusão, a dor da rejeição, a vergonha de corpos reais, do que os afeta, da busca escondida por sexo em locais onde a violência não poupa ninguém.

Entre família, (não) amigos, trabalho, amor, desejo, arrependimentos, desavenças, ousadias, profanações, pecados, descobertas proibidas, a narrativa avança, intercalada com animações que acrescentam (in)coerência, diversidade e beleza ao processo, em anos muito sofridos aos que ousavam exercitar o desejo de  felicidade.

 David narra como descobre na adolescência, com a Internet, novas formas de como poderia encontrar o amor, incursionando nesse universo digital duvidoso e por vezes cruel. Mas isso é só o início de um diário de bordo, de um mapa imaginário mas real, mesclado com animações feitas pelo próprio David, que nos atingem em cheio, por sua verdade estrondosa e redundantemente honesta, crua, mas terna. Revela muito sobre o amor, o desejo, a humanidade, a solidão, o desespero. Como diria Nietzsche, humano, demasiadamente humano E, por isso, nos toca tanto.

Um raro deleite nesses tempos de avanço do fascismo e de tentativa de redução de liberdades, especialmente aqueles que ainda ousam desafiar esse sistema que nega pão, beleza e afetos. Mas que traz em seu seio, como alertou Foucault, a possibilidade de sua negação.

 Autora: Mirela Ribeiro Meira, Artista plástica e Dra. em Educação. Professora Associada da Universidade Federal do Pampa, Unipampa Campus Bagé

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