“Ainda Orangotangos”: (re)descobrindo o que há de melhor no cinema brasileiro

Por Bárbara Alves Branco Machado¹

Baseado na obra literária do escritor gaúcho Paulo Scott, “Ainda Orangotangos”, de Gustavo Spolidoro, é uma comédia lançada em 2008 que carrega o “título” de ser o primeiro longa-metragem integralmente filmado em plano-sequência do Brasil, processo que consiste em gravar em único plano, sem cortes. Porém o filme porto-alegrense é muito mais que o pioneiro nesse aspecto técnico. Dividido em situações que acontecem durante um dos dias próximos ao Natal de 2006, a película aborda o despertar do primitivismo humano em situações triviais do cotidiano de forma magistral.

A primeira situação ocorre com um vendedor japonês (Lindon Shimizu) partindo para mais um dia de trabalho. No entanto, o homem precisa lidar com as limitações geradas por não falar português e ainda com o fato de sua esposa (Karina Kazuê) “não acordar” dentro do metrô. A reação das pessoas ao redor é de completa apatia ao seu desespero por não conseguir reanimar a esposa. Enquanto há uma mulher inconsciente e um homem desesperado, a vida continua independente do que está acontecendo ao redor: músicos tocam, pessoas se dirigem às saídas do metrô, as condições climáticas, o horário e os votos de bom dia são mencionados aos passageiros instantes antes do desembarque.  

Logo após o emblemático primeiro caso, somos conduzidos ao Mercado Público ao som de um clássico do rock gaúcho na versão de Arthur de Faria e Seu Conjunto. É então que o vendedor encontra seu primeiro cliente do dia, um carismático menino (Kayodê Silva) com a camisa do Sport Club Internacional. Em relação ao clube é necessário pontuar o significativo número de referências ao time, principalmente na situação posterior, que ocorre dentro de um ônibus. Nesse referido lugar, um casal de namoradas (Renata de Lélis e Janaína Kremer) discutem a origem da expressão “tri”, uma divertida teoria futebolística relacionada à visita de João Paulo II à capital gaúcha nos anos 1980 e sobre as “importadas” tradições natalinas brasileiras.

É preciso ressaltar que os diálogos do ônibus, assim como quase todas as falas do filme, são marcados pelo forte sotaque gaúcho de Porto Alegre. Esse fato pode ser um deleite para os espectadores oriundos da capital, entretanto pode gerar incompreensão aos assistentes de fora do estado e até mesmo para gaúchos não familiarizados com o falar porto-alegrense, embora o sotaque dos personagens somado à competência de seus intérpretes seja um dos fatores fundamentais para a naturalidade e aura social de “Ainda Orangotangos”.  

Após os primeiros momentos que causam um misto de diversão e provocação, o filme pode se tornar incomodo ao espectador mais sensível com o que se sucede a seguir. O desorientador caso de pombofobia de uma mulher (Arlete Cunha) impressiona, mas é uma inusitada alternativa de um casal (Letícia Bertagna e Roberto Oliveira) para driblar a falta de bebidas alcoólicas que irá testar a sensibilidade do público. Ressalva para as viscerais atuações do elenco das duas circunstâncias e para a hilária inserção de personagens da cultura popular nos diálogos.    

Na passagem seguinte, o menino colorado e outros personagens presentes retornam em cenas que ocorrem em uma mercearia e nas ruas de Porto Alegre. A conversa do garoto com o caixa (Marcelo de Paula) é um dos momentos mais divertidos de “Ainda Orangotangos”. Logo após essa cena, acompanhamos um idoso (Girley Paes) até o parque da Redenção. É nesse contexto que assistimos uma selvagem manifestação de devaneio vinda de um jovem escritor (Heinz Limaverde) e destinada ao futuro editor de seu livro, um romance com diversas “histórias sobre homens e macacos” com acontecimentos “primitivos e sofisticados”.      

O longa encerra com um episódio que traz uma das referências do cartaz oficial. Os fatos ocorrem em uma festa evangélica de 15 anos na perspectiva do professor de canto (Rafael Sieg) da debutante (Juliana Spolidoro). O desfecho final evoca toda a violência e irracionalidade que permeou todas as cenas de “Ainda Orangotangos”. Destaque para os extremos da trilha sonora, pois a dramatização inicia pacificamente ao som de música gospel, se estende a uma valsa, mas tem seu ápice quando o punk rock entra em cena. E todos os gêneros citados são tocados pelo mesmo conjunto musical, como se os músicos tocassem a canção que mais cabe para cada momento enquanto observam o que acontece ao redor sem pensar, sem racionalizar, fazendo música e agindo apenas por instinto.  

Uma característica notável, ainda que seja bastante comum em muitas obras do gênero, é a questão do riso. O filme é classificado como uma comédia, porém as situações mostradas, se analisadas a fundo, não são cômicas, embora levem o espectador ao riso. Tal fato pode nos fazer refletir sobre os motivos que fazem nós, seres “racionais”, observarmos de forma hilária verdadeiros dramas humanos, principalmente quando os mesmos pertencem à realidade alheia.       

Gustavo Spolidoro ganhou o prêmio de melhor filme no 13º Festival de Cinema de Milão com uma obra fugaz, ágil, visceral e genuinamente humana. “Ainda Orangotangos” é um excelente longa-metragem com personagens sociais que ilustram o lado primitivo do homem. Um filme que merece ser (re)descoberto e representa o que há de melhor no subestimado cinema nacional.

¹  Graduada no Curso de Letras – Línguas Adicionais: inglês, espanhol e suas respectivas literaturas pela Universidade Federal do Pampa.

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