Ano 10 nº 023/2022 – A noite escura da alma
Por Maria Yaguna
Fiquei e esqueci-me,
o rosto reclinei sobre o amado;
cessou tudo, e deixei-me,
deixando meu cuidado
entre as açucenas esquecido.
Existe um termo em culturas muito antigas, “noite escura da alma” que, a exemplo de muitas outras tradições, foi cristianizado, trazido a outra realidade religiosa para que principalmente pessoas simples, como os camponeses, fossem convertidos ao cristianismo sem maiores resistências. Ao contrário das tradições que simplesmente foram extinguidas, a reverberação de tais práticas ou conceitos culturais pode ser ouvida até os dias de hoje. Em 1578, por exemplo, San Juan de la Cruz, um poeta espanhol, místico e católico escreveu “La noche oscura del alma”, poema extratado acima, enquanto estava preso pelos próprios irmãos de Ordem religiosa, contrários às mudanças na mesma. Refere-se à noite escura pela qual todos passamos, um tipo de crise espiritual e, reconhecendo na contemporaneidade os sintomas, encontramos a depressão.
A noite escura nos fragmenta, nos desconecta de “nós mesmos”, nos arrasa (aos gritos) ao mesmo tempo que nos silencia.
No filme “O feitiço do tempo” ou “O dia da marmota”, o personagem de Bill Murray revive sempre o mesmo dia e se, no início, ele resolve brincar com essa realidade, depois torna-se extremamente angustiante, até que ele resolve ser uma pessoa “melhor”. O filme é uma metáfora da noite escura da alma, que pode ser desencadeada por inúmeros fatores, mas, como somos culturalmente ensinados a não sentir, inicialmente não damos a devida atenção à chegada da noite escura, até que nos vemos envolvidos em brumas espessas e perdemos a visão do lado de lá.
Para atravessar a noite escura, é preciso construir pontes e, na maioria das vezes, não podemos construí-las sozinhos. A base da construção é aceitar que sentimos, sentimos dor, raiva, tristeza, solidão. Entender que não precisamos ser pessoas melhores ou merecedoras de afeto para limpar as brumas da noite escura, somos pessoas e somos merecedores de amor. O velho e bom Freud, que aliás aniversaria dia 06 de maio, disse: “É preciso amar para não adoecer”.
Lembrando que depressão é uma doença séria e requer cuidados específicos.
Maria Yaguna Psicóloga Clínica CRP RS 07/37122Pós graduada em Psicanálise Clínica. Arteira, mulher do meidomato, mãe da Carola e dos tililicos.