Ano 09 nº 036/2021 – A angústia de hoje já era moda em 76

Por Saulo Eich

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Na canção Alucinação, que dá título a seu álbum de maior sucesso, Belchior, dono de reflexões profundas e na maioria das vezes angustiantes sobre a vida, trouxe um paradoxo intrigante no trecho onde canta “a minha alucinação é suportar o dia-a-dia e meu delírio é a experiência com coisas reais”. Intrigante porque, assim como o teor de toda a canção, ele sugere, neste recorte em especial, refutar o trânsito pelo campo das suas divagações existenciais, afirmando que seus devaneios são baseados no concreto, que seus delírios acontecem baseados no real. Um paradoxo, não é? Mas, tudo bem, talvez não seja tão difícil entender que ele quis expressar algo no sentido de que o importante é o que interessa e nada para além disso deve ter relevância

Intrigante ainda por, talvez, da forma poética como Belchior sempre soube fazer, iluminar uma condição quase de causa e efeito, a qual seria impossível, diria eu, de não estarmos predispostos: o fato de que, quanto mais contato conseguimos ter com a realidade e com a nossa realidade especialmente, mais delirantes passamos a ser, uma vez que lidar com essas experiências reais seria insuportável não fossem nossas fugas em delírios.

Não sei exatamente o que Belchior sentiu quando fez questão de pontuar que seus delírios advinham de suas experiências com coisas reais, mas ele descreveu com maestria, muitos anos antes, o que estamos sentindo nos dias atuais, diante da situação da pandemia, por exemplo. Os efeitos deste ano de isolamento, intercalado entre regras mais rígidas e outras mais flexíveis, a nível emocional, têm sido gritantes para muitas pessoas. A forma como, em um ano, passamos a naturalizar um contexto, que até outrora seria surreal de se imaginar que estivéssemos vivendo, é muito condizente com um cenário onde a maior alucinação seja suportar o dia-a-dia, visto que nada, ou quase nada, alucina mais do que ter que suportar, dia após dia, uma pandemia onde sobram negacionistas e faltam vacinas…

Na letra da mesma música, Belchior ainda exalta, no seu esforço de evidenciar as experiências reais, figuras que estão por alguma razão à margem: “o preto, o pobre, o estudante e uma mulher sozinha”. Personagens que, lá na época em que o álbum foi lançado, no ano de 1976, viviam o período da Ditadura Militar no Brasil. Personagens esses que, somados a tantos outros, embora estejamos em um contexto diferente, continuam, ainda hoje, vivendo à margem. Personagens reais que vivem delírios reais. 

Quando o disco Alucinação foi lançado, o próprio Belchior descreveu a obra como “uma viagem ao redor do quarto, da alma, do corpo e de suas perspectivas individuais”; nada mais atual do que o que vivemos em tempos de pandemia, repetindo esse processo, dia após dia, num exercício forçado de (re)encontro com a nossa própria casa, nas modalidades remotas de trabalho e estudo, e com a gente mesmo, frente-a-frente, sem os subterfúgios que a vida anterior à pandemia possibilitava, inclusive, com os nossos próprios monstros emocionais.

Se pararmos pra ouvir duas ou três canções do Belchior, além de passar a admirar ou reforçar a admiração pelo talento deste cantor, a gente vai notar um tom de súplica pra que algo mude. Um desespero vestido de tudo vai passar que, se já era moda em 76, imagina hoje, em 2021, mais especificamente em uma semana onde o Brasil chega a marca de 300 mil mortos por um vírus, enquanto os negacionistas seguem atravancando o nosso caminho…

Mas um tudo vai passar legítimo, ainda que, tanto lá nos anos 70, quanto hoje, se apresente como um acessório que precisamos trazer pra junto de nós, um recurso do qual precisamos provocar o uso de maneira autoinduzida. 

A propósito, já que trouxe Belchior e sua alucinação pra esta escrita, lembro que ele, nascido em Sobral, no Ceará, viveu os últimos anos de vida isolado no Uruguai e, posteriormente, no Rio Grande do Sul, vindo a falecer em 2017 na cidade de Santa Cruz do Sul, aqui no RS, imerso, sabe-se lá, em que delírios fatais…

Um abraço e até o mês que vem! 

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Saulo Eich é psicólogo clínico infantil e adulto,

de abordagem Cognitivo Comportamental, em Bagé/RS.

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