Ano 09 nº 058/2021 – Um (meu) caminho para a poesia contemporânea
Por Mariane Rocha
Olá, leitoras e leitores!
Foi através da poesia da Angélica Freitas, poeta pelotense, o meu primeiro contato com a poesia brasileira contemporânea. Em 2013, conheci primeiro a pessoa, depois os versos, quando ela palestrou na Semana Acadêmica de Letras da Unipampa, evento que eu ajudei a organizar. (A escolha por ela, no entanto, não foi minha: foi de uns colegas vanguardistas que escolheram nomes importantes que nos acompanham até hoje: além da Angélica Freitas, nessa mesma ocasião estiveram também Jeferson Tenório e Moema Vilela). Voltando à Angélica: ela leu alguns de seus poemas e eu fui impactada na hora, pela novidade e pela perspicácia com a qual ela colocava suas críticas à sociedade a partir de temas tão caros pra mim, como a violência de gênero.
mulher de vermelho (Um útero é do tamanho de um punho, 2012)
o que será que ela quer
essa mulher de vermelho
alguma coisa ela quer
pra ter posto esse vestido
não pode ser apenas
uma escolha casual
podia ser um amarelo
verde ou talvez azul
mas ela escolheu vermelho
ela sabe o que ela quer
e ela escolheu vestido
e ela é uma mulher
então com base nesses fatos
eu já posso afirmar
que conheço o seu desejo
caro watson, elementar:
o que ela quer sou eu euzinho
sou euzinho o que ela quer
o que mais podia ser
Foram a ironia com que a poeta questionava a cultura patriarcal e a assertividade com que direcionava essas questões que capturaram a atenção da Mariane de 18 anos. Com o tempo, porém, várias vezes este mesmo livrinho — Um útero é do tamanho de um punho (2012) — retornou à minha vida. Conversei sobre ele em um clube do livro, utilizei vários de seus poemas em sala de aula, discuti a obra completa da Angélica em um grupo de estudos no mestrado.
Foto: Mariane Rocha
E, a cada releitura, uma nova faceta dessa lírica foi se desdobrando para mim: a complexa camada intertextual de autoras, poetas, artistas, colocados sem distinção, do clássico ao contemporâneo, do cânone à cultura popular; a hibridização da poesia com a carta, o causo, o relato, a pesquisa online; a variedade de recursos estilísticos, especialmente a riqueza das figuras sonoras. Todos esses procedimentos associados a um olhar sagaz sobre questões atuais me mobilizam e fazem com que, de tempos em tempos, eu retorne a esses poemas.
metonímia (Um útero é do tamanho de um punho, 2012)
alguém quer saber o que é metonímia
abre uma página da wikipédia
depara com um trecho de borges
em que a proa representa o navio
a parte pelo todo se chama sinédoque
a parte pelo todo em minha vida
este pedaço de tapeçaria
é representativo? não é representativo?
eu não queria saber o que era
metonímia, entrei na página errada
eu queria saber como se chegava
perguntei a um guarda
não queria fazer uma leitura
equivocada
mas todas as leituras de poesia
são equivocadas
queria escrever um poema
bem contemporâneo
sem ter que trocar fluídos
com o contemporâneo
como roland barthes na cama
só os clássicos
Recentemente, Angélica lançou mais um livro: Canções de atormentar (2020), dessa vez pela Companhia das Letras. Eu já tinha ouvido um poema desse livro em performance da poeta com a cantora Juliana Perdigão, em 2018, na PUC-RS. Ainda lembro dos ritmos e dos sons do poema recitado e, desde lá, o mistério desse imaginário marítimo repleto de sereias e navegantes me inquietava. O texto da performance, que tem o mesmo título do livro, está completo na última seção da publicação. Além do poema “Canções de atormentar”, o livro homônimo contém mais 46 poemas e mantém as características centrais de Freitas, a dialética entre ferocidade e humor, que só o seu olhar crítico e irônico sobre a vida é capaz de apresentar. Há, aqui, entretanto, um novo ângulo a respeito dos acontecimentos, certo olhar memorialístico que relembra a poeta da juventude, da infância, da família e de tempos remotos (desses poemas, o meu preferido é o “ana c”, no qual o eu lírico reflete sobre como a leitura da poeta Ana Cristina Cesar mudou sua vida). Além disso, há uma tensão entre o local e o global que vai, em um nível, reverberar as experiências pessoais da poeta, em outro, propor a discussão de questões urgentes, como no poema “porto alegre, 2016”.
porto alegre, 2016 (Canções de atormentar, 2020)
quando você viu na TV
aquelas pessoas em fila na chuva
à noite numa estrada
na fronteira de um país que não as deseja
e quando você viu as bombas
caírem sobre cidades distantes
com aquelas casas e ruas
tão sujas e tão diferentes
e quando você viu a polícia
na praça do país estrangeiro
partiu para cima dos manifestantes
com bombas de gás lacrimogêneo
não pensou duas vezes
nem trocou o canal
e foi pegar comida
na geladeira
não reparou o que vinha
que era só uma questão de tempo
não interpretou como sinal a notícia
não precisou estocar mantimentos
agora a colher cai da boca
e o barulho de bomba é ali fora
e a polícia vai pra cima dos teus afetos
munida de espadas, sobre cavalos
Espero que todos vocês conheçam a poesia da Angélica e se enveredem por esses caminhos da nossa poesia contemporânea, tão repletos de possibilidades. Para saber mais sobre a poeta, recomendo esta série de vídeos feita pelo canal Estratégia narrativa. Desejo uma boa leitura a todos vocês! Conversamos no mês que vem.
Mariane Rocha é leitora desde que se conhece por gente. Graduada e mestra em Letras, atualmente é professora de literatura e língua portuguesa no IFSul, em Bagé. Estuda poesia contemporânea e suas articulações com fotografia e cinema no doutorado em Letras da UFPel.