Coluna do Saulo

IMG_20190506_175947_300

Por Saulo Eich

Sonhos não envelhecem

 

O título do que escrevo hoje remete a uma canção que eu particularmente gosto muito, “Clube da Esquina II”, que faz parte de, talvez, um dos projetos mais lindos da música popular brasileira, o Clube da Esquina, idealizado por Milton Nascimento, Lô Borges e outros artistas mineiros em meio ao momento mais crítico da ditadura militar no Brasil, em meados de 1970. Não é nenhuma novidade que o período do regime militar foi, se é que é possível assim dizer, uma mola propulsora de resistência em forma de afeto, e afeto em forma de arte, tanto é que vários artistas da MPB, à época, trazem em suas composições a expressão das angústias e dos anseios pelo momento que o país vivia. 

A eleição de um presidente que reverenciou a memória de um dos maiores torturadores da ditadura brasileira em cadeia nacional e que, de lá pra cá, valendo-se da notoriedade que angariou, mas sobretudo, fazendo uso de seus valores – ou da falta deles, vem defendendo inúmeras ideias que vão na contramão de importantes lutas sociais, fez emergir em grande parte da população um desconforto que ultrapassa as delimitações políticas e partidárias. Um desconforto que beira um adoecimento emocional coletivo: além de uma explosão de pessoas cegamente convictas de seus pontos de vista, o cenário atual traz uma pressa e também desesperança sintomáticas. 

Não é nada fácil e macio para nossos ouvidos quando o representante máximo da república desdenha da fome no país, ao afirmar que aqui ela não existe, assim como soa de um tremendo mau gosto quando o presidente expressa que só os veganos se importam com a questão ambiental, entre tantos outros exemplos de descompromisso social e dificuldade empática que eu poderia aqui citar. Retornando a  referência à canção do Clube da Esquina, cuja letra podem ler abaixo, ela tenta nos dizer que, mesmo em meio a todo o caos, existem os dias passando, o que nos permite lembrar do caráter transitório das situações, e que os desejos e sonhos não são suscetíveis a essa passagem de tempo, pois eles não envelhecem.

Pra que consigamos traduzir toda essa subjetividade que a canção tenta trazer é fundamental entendermos que existe um lugar onde as circunstâncias nos colocam e, nesse lugar, é inevitável de estarmos, visto que não temos o total controle sobre o externo a nós. Mas existe um outro lugar onde nós nos colocamos a partir desse local que as circunstâncias nos colocam, e é neste lugar que possuímos uma capacidade maior de ingerir, porque ali somos somente nós, enxergando o que o externo nos impõe e percebendo o que estamos fazendo com aquilo que nos foi feito. O lugar onde fomos colocados hoje enquanto brasileiros é, para alguns, um lugar de libertação, percepção esta que este que vos fala particularmente entende como ilusória; e, para outros, um lugar muito doloroso mas, um lugar de resistir. E tudo o que eu tentei aqui expressar pode se resumir a isso: a dor é provocada por um elemento alheio à nossa vontade, mas a resistência a ela é produzida a partir de nós. 

Resistir é sonhar, e nossos sonhos, como diz a música, não envelhecem jamais, aconteça o que acontecer. Até o mês que vem!

Por que se chamava moço
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
Nem lembra se olhou pra trás
Ao primeiro passo, aço, aço…

Por que se chamava homem
Também se chamava sonhos
E sonhos não envelhecem
Em meio a tantos gases
lacrimogênios
Ficam calmos, calmos

E lá se vai mais um dia

E basta contar compasso
e basta contar consigo
Que a chama não tem pavio
De tudo se faz canção
E o coração
Na curva de um rio, rio…

E o Rio de asfalto e gente
Entorna pelas ladeiras
Entope o meio fio
Esquina mais de um milhão
Quero ver então a gente,
gente, gente…

(“Clube da Esquina II”, Composição: Lô Borges)

20190728_032218

Imagem: Capa do álbum “Clube da esquina II” de 1978

Saulo é psicólogo clínico Infantil e Adulto, de abordagem Cognitivo Comportamental, em Bagé/RS

Deixe seu comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Junipampa