Ano 07 nº 057/2019 – Atravessamentos culturais da masculinidade na saúde do homem

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                                                                                                                                                                               Por Saulo Eich

Saulo é psicólogo clínico Infantil e Adulto, de abordagem Cognitivo Comportamental, em Bagé/RS

Não raro nos deparamos com a afirmação de que homem não pode chorar ou expressar suas emoções de maneira mais sensível, pois isso remete a fragilidade de sua masculinidade e de sua virilidade. Esse é um reflexo claro, talvez o mais claro deles, da forma como a percepção do que é ser masculino se moldou ao longo dos séculos, convergindo para um modelo de homem rude, com emoções anuladas e de direcionamento de condutas impositivas. Não é nenhuma novidade o caráter nocivo desse perfil perante as mulheres que sofrem, desde as mais veladas formas de violência até os registros de feminicídio, por parte desses homens construídos na base sólida do machismo.

O que quero destacar aqui é o impacto inegável, mas muitas vezes preterido, desse molde na saúde física e mental dos próprios homens. A começar pelo exemplo oportuno, visto que estamos entrando no mês de novembro, o mês do “novembro azul”, do preconceito masculino com o exame de toque para avaliação da próstata. Hoje existem outras alternativas para se realizar a verificação que não por via retal mas, o exame de toque,  quando necessário, ainda é um fator de resistência por parte de muitos homens, sobretudo aqueles que estão na faixa etária com maior incidência de câncer de próstata, acima dos 40 anos. Não estranha pensar que, estes mesmos homens, acima desta faixa etária, apresentam, de modo geral, maior resistência para repensar o modelo de ser homem vigente em seus comportamentos e em suas percepções de mundo. Homens esses que vem, em sua maioria, de um tempo onde não aderir ao uso do tabaco era sinônimo de pouca virilidade. Ser “mais homem” passava, dentre tantas outras simbologias, pela necessidade de fumar, como forma de esclarecer para a sociedade de modo notório, sem deixar dúvidas, sua orientação heterossexual e sua masculinidade viril. O câncer de pulmão, diretamente relacionado ao uso do cigarro, representa, segundo o Instituto Nacional de Câncer, o INCA, 13% de todos os casos de câncer no país. 

A exemplo do hábito de fumar como forma de afirmação de um modelo de masculinidade nas décadas passadas, o homem segue, cotidianamente se expondo a situações de risco pela mesma lógica. O trânsito é um contexto interessante para se pensar isso. Enquanto  uma parcela de homens motoristas (e até mesmo outras mulheres) não dá a mulher condutora a mesma credibilidade, e ilustro isso com a expressão clássica utilizada para reforçar o machismo no trânsito que refere que “mulher no volante é perigo constante”, os homens lideram a estatística de acidentes de trânsito com morte no país, de acordo com o Sistema de Informação sobre Mortalidade, o SIM. Dados esses que nos remetem a pensar em condutas de risco como condução sob efeito de álcool, disputas por velocidade ou o simples prazer pelo excesso dela.

Pensando o espectro emocional do homem, facilmente caímos num lugar onde transitamos entre uma necessidade quase que compulsória de refutar todo e qualquer resquício de sensibilidade emocional expressada pelo masculino. E aí, nessa seara onde por tanto tempo se cultivou, e ainda se cultiva, a fuga do homem de seus aspectos emocionais, eclodem sinais claros da nocividade desse modelo também na saúde mental: os homens representam 76% dos casos registrados de suicídio no Brasil, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde,  a OMS. Tal estatística ilustra, de maneira ampla, a dificuldade que os homens encontram ao se esbarrarem com seus sofrimentos emocionais. Naturalmente, vivenciar traumas, lutos e momentos de profunda angústia é uma tarefa emocionalmente complexa. Ainda que a taxa de suicídio entre homens reflita uma soma de fatores como a letalidade da tentativa, que em homens é predominantemente maior em relação a forma como mulheres em geral tentam executar a ideação suicida, o indicativo de que homens cometem suicídio numa prevalência três vezes maior do que as mulheres demonstra, também, uma dificuldade aparentemente maior por parte deles na resolução e elaboração de momentos emocionalmente difíceis.

Quando pensamos em resolução de dilemas emocionais por parte dos homens, precisamos pensar na determinância que heranças culturais simples da construção masculina possuem nesse processo. Homens buscam menos os serviços de saúde em geral do que as mulheres. Dentro desse cenário, no que tange a saúde mental, a busca dos homens por tratamento e suporte profissional se torna ainda menor. E isso certamente se deve a algumas razões atreladas a esse formato distorcido do que é ser homem. Na clínica, não raras vezes me deparo com pacientes homens expressando a motivação por buscar psicoterapia com um profissional do sexo masculino relacionada a dificuldade em revelar suas fragilidades para uma profissional mulher, o que demonstra, em outras palavras, a dificuldade que o homem ainda possui em se colocar num lugar de igualdade com a mulher, mesmo no que diz respeito à condição de serem igualmente passíveis de sofrimento psíquico.

O engessamento da cultura machista e de um homem que anula seu emocional produz prejuízo a todos: às mulheres, em relações de possessão, de tentativa de dominação e demonstração muitas vezes de inabilidade emocional pra se relacionar com a singularidade do outro, demonstrada por muitos homens; aos filhos e filhas desses homens, que absorvem o modelo e adquirem uma pré-disposição significativa de reproduzirem em suas relações; e como explicitado ao longo desta minha escrita, aos próprios homens, em conduções tortas do que é ser homem, que desaguam em resoluções igualmente tortas, nos mais variados aspectos.

Por fim, a boa notícia é que falei aqui de um perfil de exercer o masculino muito forte e presente na identidade de cada um de nós, homens, mas se dissolvendo de forma promissora, a medida que se percebe cada vez mais homens dispostos a debater e repensar suas condutas nocivas para o outro e para sí mesmos, dispostos  a questionar e desconstruir essa caixa conhecida como masculinidade hegemônica. Deixo como sugestão o documentário “O silêncio dos homens”, que demonstra algumas dessas iniciativas de homens que buscam reinventar suas masculinidades.

Grato pela leitura, até o mês que vem!

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