Ano 10 nº 066/2022 – Memórias de leitura da escola

Por Aline Reinhardt da Silveira

Cursar uma Licenciatura, em especial para quem já saiu do ensino básico há bastante tempo como eu, provoca uma constante rememoração de experiências vividas como estudante, sob a óptica de quem está em formação para ser professora. No curso de Letras, particularmente, pensar nas práticas de leitura e escrita acontecem não só naturalmente ao longo das aulas e dos estudos, quanto são incentivadas pelos nossos professores, à luz dos textos teóricos lidos e dos debates realizados. São formas de repensar a prática docente e o que buscamos ensinar, de fato, na escola.

Diante do incentivo para produzir uma memória sobre os anos escolares, pus-me a refletir sobre como a leitura se “infiltrou” desde sempre em minha vida. Falar em prática de leitura na escola remete-me não às aulas de português, imediatamente, como poderia se esperar, mas sim às aulas de história e geografia do Ensino Fundamental, durante as quais líamos em voz alta em sala de aula, alternando a vez de fala entre os colegas, de forma a garantir que todos realizássemos tanto a leitura do conteúdo exposto no livro didático, quanto desenvolvêssemos uma compreensão satisfatória do que havia sido lido. Isso que sempre pareceu, de certa forma, curioso para mim, é explicado por J. W. Geraldi (1999) logo na abertura de seu texto “Prática de leitura na escola”, no qual enfatiza a importância da leitura em voz alta para o desenvolvimento da oralidade. 

Já na disciplina de Português, vivíamos uma simulação da leitura de textos: o foco principal não ficava nos textos lidos, nada além de umas poucas questões de “interpretação” respondidas individualmente. Importavam mais o domínio da metalinguagem, as respostas, às vezes dissertativas, às vezes de marcar, sobre questões gramaticais. O que era lido, os efeitos de sentido possíveis de serem produzidos a partir do texto, as informações que poderíamos aprender a partir daquelas leituras – em geral, não mais longas que três ou quatro parágrafos – não havia vez. Tudo isso era muito mais explorado nas tais aulas de história e geografia do que no tempo dedicado à leitura nas aulas de português.

Nas aulas da língua vernácula, assim como afirma Geraldi ao retomar Benveniste, não era minha a voz que falava, “mas voz que devolve, reproduz a fala do eu-professor-escola” (GERALDI, 1984), em busca da ‘resposta certa’ e uma boa nota. 

Entretanto (e buscando fazer justiça à memória carinhosa que tenho de minha professora de português), é das aula de “interpretação” que lembro de um encontro que muito me marcou com Carlos Drummond de Andrade, o primeiro com esse autor, talvez, por meio do texto “O poder ultrajovem – no restaurante”. Tratava-se da crônica que abria uma unidade de nosso livro didático (creio que da sétima série), e com o qual pude experimentar a fruição da leitura, o simples prazer de ler, tal qual o que eu tinha ao ler gibis e outros livros em casa, por diversão. 

Pude, naquele momento, vivenciar a satisfação de saborear o jogo de palavras e frases magistrais em uma crônica sobre um almoço entre um pai e uma filha de quatro anos de idade em um restaurante – e em como ela exerce sobre o pai seu poder ultrajovem. Impossível não mencionar a alegria de estar em contato com o texto que originou tal designação, “ultrajovem”, que nomeava naquela época justamente um dos programas de TV mais populares entre os da minha idade. É a tal relação com outros textos significativos para o leitor sobre a qual fala Lajolo, conforme citada por Geraldi (1984), e que a mim marcou profundamente.

Certamente outros fins produtivistas, muito comuns ainda nos anos 1990, devem ter sido explorados depois da leitura do texto. Contudo, o que ficou em mim foi esse momento de fruição com a leitura que me foi permitida e o encontro com um dos maiores de nossa literatura em uma manhã cinza como tantas outras.

Creio, a partir disso e da leitura do texto de Geraldi (1999), na potência que há em permitir o prazer, o acesso aos afetos, aos sentimentos, e à relação com outros textos lidos/vistos/conhecidos pelos alunos como prática escolar. É permitir e promover, conforme afirma Geraldi (1984), o efetivo “processo de produção de interlocução entre leitor/autor mediado pelo texto. Encontro com o autor, ausente, que se dá por sua palavra escrita”. É, parafraseando citação de Chauí conforme citada por Geraldi (1984), permitir que o aprendiz de natação dialogue com a água e não com o professor, o qual deve ser mediador do diálogo aprendiz-água, estudante-texto. Ou corremos o risco de passarmos (ou fazer passarem) a vida apenas sentados à borda, molhando não mais que a ponta do pé no oceano de sentidos que poderíamos experimentar.

Bibliografia citada:

GERALDI, J. W. O texto na sala da aula: leitura e produção. Cascavel: Assoeste, 1984.

* Agradeço ao professor Nathan Bastos de Souza pelo primeiro incentivo para a escrita dessa memória, e sua primeira leitura.

Link para a crônica citada: https://www.tyrannusmelancholicus.com.br/cronicas/6172/o-poder-ultrajovem-no-restaurante 

Aline Reinhardt é jornalista na Universidade Federal do Pampa e atualmente cursa a graduação em Letras – Português e Respectivas Literaturas na mesma instituição, Campus Bagé. É doutoranda em Letras pela Universidade Federal de Pelotas, e petiana desde o início de 2022. 

“Esta é a coluna do PET-Letras, Programa de Educação Tutorial do curso de Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa, do campus Bagé. O programa, financiado pelo FNDE/MEC, visa fornecer aos seus bolsistas uma formação ampla que contemple não apenas uma formação acadêmica qualificada como também uma formação cidadã no sentido de formar sujeitos responsáveis por seu papel social na transformação da realidade nacional. Com essa filosofia é que o PET desenvolve projetos e ações nos eixos de pesquisa, ensino e extensão. Nessa coluna, você lerá textos produzidos pelos petianos que registram suas reflexões acerca de temas gerados e debatidos a partir das ações desenvolvidas pelo grupo. Esperamos que apreciem nossa coluna. Boa leitura”.

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