Ano 13 Nº 52/2025 A aventura que se transformou em rotina e em constante aprendizado
Por: Paula Diele Pereira Fonseca

A experiência de adaptação à vida na China foi marcada por desafios iniciais, principalmente em razão da barreira linguística. Sem dominar o inglês, busquei alternativas para me orientar e conhecer melhor o ambiente em que estava inserida. Nos primeiros meses, adotei a estratégia de utilizar o transporte público de forma exploratória: após deixar meu filho na escola, deslocava-me de ônibus até pontos diferentes da cidade e realizava caminhadas pelas redondezas. Essa prática possibilitou a descoberta de mercados, restaurantes e estabelecimentos frequentados predominantemente pela população local.
Embora houvesse regiões voltadas para estrangeiros, com restaurantes internacionais e supermercados que ofereciam produtos importados, meu objetivo consistia em compreender e vivenciar o cotidiano chinês. Nesse processo, observei aspectos culturais profundamente distintos daqueles praticados no Brasil, sobretudo relacionados ao consumo e ao comércio de alimentos.
Um dos episódios mais marcantes ocorreu em um mercado onde animais vivos eram abatidos na presença dos clientes. Como médica veterinária, essa prática me causou forte impacto, mas foi possível compreender que, segundo a perspectiva cultural chinesa, a carne fresca é considerada essencial para garantir qualidade nutricional.
Além disso, em mercados de rua, constatei que carnes de diferentes espécies como: aves, suínos e bovinos, eram frequentemente expostas sem refrigeração adequada, muitas vezes ao ar livre e sem proteção contra insetos. Também não havia separação clara entre os tipos de carne. Sob a ótica brasileira, cuja legislação sanitária é rigorosa e estabelece normas específicas para o manuseio e a conservação de alimentos de origem animal, essas práticas podem causar estranhamento. Contudo, no contexto local, representam parte de um sistema cultural consolidado e socialmente aceito.
Assim, diariamente tive a oportunidade de conhecer novos lugares, bem como aprofundar meu conhecimento sobre a cidade onde residia.
A comunidade brasileira local situava-se a aproximadamente uma hora de metrô de minha residência. Apesar da distância, busquei estabelecer vínculos de amizade. Nesse processo, passei a me oferecer para cuidar de cães e gatos de brasileiros que viajavam, o que me proporcionava a possibilidade de manter contato com a prática veterinária e a sensação de estar desempenhando uma atividade significativa, ainda que em pequena escala. Foi nesse contexto que conheci Cinthia, tutora de Jessie, uma cadela, e de Woody, um gato de pelagem amarela. A partir desses cuidados, desenvolvemos uma relação de amizade que também se estendeu à minha família, resultando em uma rede de apoio para Samuel. Trocávamos cuidados com as crianças, o que possibilitou a mim e a Fábio, meu marido, conhecer aspectos da vida noturna chinesa, como festas e bares.
Nesse mesmo período, conheci outra brasileira casada com um alemão, que residia próximo à minha região. A partir dessa relação, iniciei a prática de atividades físicas, uma vez que ela as realizava de forma rotineira. Gabriela, minha nova amiga, era mãe de uma menina de dois anos, e frequentemente, após o horário escolar, levávamos as crianças para brincar juntas. Essa amizade constituiu-se como um importante suporte emocional, especialmente em um momento em que eu me sentia sozinha e carente. Além disso, nossas atividades cotidianas permitiram-me observar diferenças culturais na prática de exercícios físicos entre chineses e brasileiros também.
Notei, por exemplo, que muitos chineses frequentam academias trajando calças jeans ou até pijamas, realizando, em geral, exercícios leves e com pouco uso de carga. Além disso, é comum o consumo contínuo de água morna durante os treinos.
Outro aspecto que se diferencia do contexto brasileiro é a utilização do ar-condicionado em ambientes de prática esportiva. Na China, o uso de ar frio não é amplamente aceito, pois, segundo a tradição, mudanças bruscas de temperatura podem ser prejudiciais à saúde. Acredita-se que o ar-condicionado enfraquece o corpo, especialmente quando o indivíduo está suando e com os poros abertos. Dessa forma, predomina a ideia de que realizar exercícios em ambientes mais aquecidos fortalece a resistência e favorece a circulação da energia vital, o Qi.
Durante o período em que mantive minha rotina de treinamento diário, enfrentei uma dificuldade significativa com a chegada do verão. Na cidade em que resido, as temperaturas variam entre 38°C e 40°C, com sensação térmica de até 47°C. Diferentemente do Brasil, não há períodos mais amenos no início da manhã ou no final da tarde; o clima permanece constantemente quente, úmido e abafado, o que tornou o treino um grande desafio.
Apesar das condições climáticas adversas, mantive o foco e continuei frequentando a academia, mesmo durante a viagem de Gabriela ao Brasil. Entretanto, em determinado momento, sofri um episódio de desmaio. Ao recobrar a consciência, percebi que estava cercada por diversas pessoas, que, segundo o costume local, se expressavam em voz alta, o que intensificou minha angústia. A barreira linguística agravou a situação, pois não consegui solicitar um recipiente para vomitar, resultando em vômito no chão.
Após esse episódio, utilizei um tradutor para explicar que não poderia permanecer em ambiente sem ventilação adequada, devido ao calor excessivo. Os atendentes da academia procuraram justificar a importância de manter o ar-condicionado desligado, mas, por meio do diálogo, chegamos a um acordo: estabeleceu-se um horário fixo para meus treinos, durante o qual o ar-condicionado permaneceria ligado.
Iniciei minha rotina, embora ainda sinta grande saudade do Brasil, especialmente do calor humano de seu povo e das tradições locais. Vale destacar que sou uma pessoa tradicionalista, valorizo e honro as tradições gaúchas, podendo inclusive ser considerada um pouco bairrista, uma vez que acredito que a região sul representa o melhor do Brasil. Ressalto, contudo, que essa percepção se baseia em minha experiência limitada, já que não conheço plenamente outras regiões do país.
A experiência de viver na China tem implicado algumas renúncias em relação a sonhos pessoais, como acompanhar meu filho Samuel no CTG, vê-lo dançar chula ou criar meu filho em contato com atividades tradicionais, como o andar a cavalo. Entretanto, compreendo que o processo de aquisição de novos conhecimentos envolve inevitavelmente certas perdas, o que estou aprendendo a administrar.
Observo que Samuel se adaptou plenamente à cultura chinesa, demonstrando interesse e entusiasmo por aspectos relacionados ao país, incluindo vestimentas, costumes, lendas e crenças.
Apesar de todos os desafios, cada dia na China trouxe aprendizados e pequenas conquistas que me permitiram crescer e me adaptar a este novo mundo. Entre descobertas, obstáculos e adaptações, aprendi a valorizar ainda mais o significado do lar e da presença de quem amamos. E foi justamente essa saudade e essa vontade de compartilhar minhas experiências que me prepararam para um dos momentos mais especiais que eu poderia viver: receber minha família aqui, para juntos descobrirmos, rirmos e nos encantarmos com cada detalhe desta terra tão diferente e fascinante.
No próximo mês vou contar como foi a chegada deles e os dias intensos e emocionantes em que pude mostrar meu novo mundo na China para aqueles que tanto amo.

Paula Diele Pereira Fonseca, médica veterinária, mãe e educadora. Formada pela Universidade da Região da Campanha (URCAMP/Bagé). Mestre em Sanidade animal pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), possuo 13 anos de experiência com clinica e cirurgia de pequenos animais. E-mail pauladpflages@gmail.com.