Ano 13 Nº 22/2025 – O que a minissérie “Adolescência” nos ensina sobre o papel da escola no combate à misoginia em tempos de ódio digital

Por: Eduarda Machado Severo

  
Fonte: La Gaceta, 2025.  

Recentemente, tive a oportunidade de assistir a uma das minisséries mais aclamadas da Netflix no momento: Adolescência. Mais do que uma simples experiência de entretenimento, a obra apresenta-se como um instigante convite à reflexão acerca de questões complexas que permeiam o universo dos jovens. A produção britânica, criada por Stephen Graham, desenvolve-se a partir de um questionamento central: o que leva um adolescente de 13 anos a assassinar brutalmente uma colega de escola? Na trama, acompanhamos a história de Jamie Miller, um jovem acusado de matar a facadas sua colega de classe, Katie Leonard, após ter sido rejeitado por ela.  

Ao longo dos quatro episódios, gravados em planos-sequência (cenas filmadas sem cortes), a narrativa nos revela as diversas facetas que envolvem o crime, evidenciando a influência do ambiente digital, da família e da escola na formação do protagonista. A minissérie não se concentra no mistério sobre a identidade do assassino, já que fica claro desde os primeiros episódios que Jamie matou Katie, mas sim nas circunstâncias e fatores que o levaram a cometer o brutal assasinato. 

De início, Jamie nos parece um adolescente frágil e assustado, totalmente incapaz de ferir alguém. No entanto, aos poucos, nos são reveladas as diversas camadas que constituem sua realidade e que confirmam sua culpa, incluindo a influência de ideologias misóginas disseminadas em redes sociais. Diante do bullying, da insegurança de não se sentir atraente o suficiente e do desejo de reconhecimento pelas meninas da sua idade, ele acaba tornando-se um alvo fácil da chamada cultura incel. Esse termo, mencionado em Adolescência, é a

abreviação de involuntary celibates (celibatários involuntários), e refere-se a comunidades on-line de homens que se consideram rejeitados pelas mulheres e as culpam pela sua dificuldade em estabelecer relacionamentos afetivos e sexuais. 

Os incels constituem um subgrupo da “machosfera”, uma rede virtual, formada majoritariamente por homens, que tem ganhado espaço em grandes plataformas como TikTok, Instagram, YouTube e Discord. Nessas mídias, figuras como os chamados “coachs de masculinidade”, compartilham vídeos e posts, defendendo ideias de superioridade masculina  e de antifeminismo. Esses grupos difundem a crença de que os direitos e conquistas femininas, especialmente os movimentos feministas, representam uma ameaça à posição social e ao poder dos homens na sociedade. 

Nesse sentido, os adeptos dessas ideologias reduzem a figura feminina à imagem de seres manipuladores, desleais e interessados apenas por homens fisicamente atraentes ou financeiramente bem-sucedidos. Além disso, a machosfera também se caracteriza pela disseminação de discursos de ódio e teorias conspiratórias sobre as relações de gênero, o que contribui para a ascensão de práticas discriminatórias e, em casos extremos, para atos de violência. 

Conforme a narrativa de sucesso da Netflix se desenvolve, percebemos o grau de envolvimento de Jamie com comunidades virtuais misóginas. Em determinado momento, em uma conversa com a psicóloga, o adolescente admite conhecer tais grupos, justificando que “todo mundo ficava falando disso”. Ainda nesse episódio, ele explica uma das bases do pensamento incel: a chamada “teoria 80/20”. Segundo essa visão distorcida, 80% das mulheres se interessam somente por 20% dos homens – uma alegação fundamentada na interpretação incorreta de uma pesquisa originalmente voltada à área da economia. O jovem, inclusive, afirma concordar com essa perspectiva. 

É inegável que a minissérie traz à tona temas importantes, sendo um deles especialmente provocativo para minha reflexão enquanto futura docente: qual é o papel da escola e dos professores na formação social dos adolescentes? Em sala de aula, já presenciei inúmeras falas que objetificam e depreciam as meninas. Entretanto, admito que, mesmo após ter assistido à produção, ainda não havia tomado plena consciência do quanto discursos misóginos estão presentes no cotidiano dos jovens. 

Foi somente a partir de uma experiência em uma turma, composta predominantemente por meninos, que essa realidade se tornou concreta e impactante para mim. O episódio ocorreu durante uma atividade em que um dos alunos demonstrava resistência em realizar os exercícios propostos. Após distribuir as folhas de atividades à turma, comentei que já havia

entregue o material impresso justamente para facilitar o trabalho deles, evitando que precisassem copiar as questões, algo que faziam sem reclamar na aula do professor regente. Diante dessa observação, o estudante respondeu que a reclamação se dava pelo fato de eu “ser mulher” e afirmou que “não gostava de mulheres”. Fiquei tão perplexa diante da declaração que, no momento, não soube como reagir. 

Diante de situações como essas, o grande desafio observado é o de que, na maioria das vezes, essas falas são banalizadas no contexto familiar e escolar, por meio de justificativas como: “Ah, são adolescentes, falam bobagens mesmo” ou “É coisa da idade, é normal”. Contudo, discursos tornam-se crenças, que, por sua vez, se transformam em atitudes concretas, muitas das quais resultam em atos de violência relatados diariamente nos jornais. 

Segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, divulgado em 2023, foram registradas 16 ocorrências de ataques às escolas no Brasil entre os anos 2000 e 2022. Os pesquisadores afirmam que esses casos ocorridos no ambiente escolar são motivados, principalmente, por discursos de ódio, bullying, misoginia, discriminação e intolerância étnica ou religiosa. 

Desse modo, não seria papel das famílias orientar sobre esses comportamentos e supervisionar os conteúdos que os filhos consomem na internet? Sim, não há dúvidas, mas isso não é apenas dever dos cuidadores. O processo educativo dos jovens envolve a participação de diferentes instituições sociais. Logo, a família, a escola, o Estado e os meios de comunicação são agentes responsáveis pela formação desses indivíduos. 

É essencial termos em mente que o papel dos professores não deve limitar-se somente à transmissão de conteúdos formais relacionados às disciplinas escolares, os quais muitas vezes mostram-se distantes da realidade vivenciada pelos estudantes. De acordo com Bell Hooks, em “Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade”, a educação deve ser um espaço para questionamento das estruturas de poder e opressão, propondo uma pedagogia emancipatória e encorajando os estudantes a ultrapassar as fronteiras impostas por preconceitos e violências estruturais. Mais do que transmitir informações técnicas, cabe ao educador atuar como formador de sujeitos críticos, capazes de discutir sobre diferentes temas e refletir sobre o mundo em que vivem. 

Todavia, convém ressaltar a carência de formação específica dos profissionais de ensino para lidar com questões complexas, como a misoginia e outras formas de violência presentes no cotidiano escolar. Em nossa formação docente, raramente somos orientados sobre como abordar temas que ultrapassam o conhecimento científico tradicional, como gênero, preconceito e intolerância. Além disso, não somos preparados para identificar sinais

de possíveis processos de radicalização entre os discentes, o que evidencia um distanciamento da educação frente aos desafios contemporâneos da escola. 

Esse cenário é retratado em Adolescência, em que temos professores sobrecarregados e uma escola que desconhece o contexto de violência no qual seus alunos estão inseridos. A instituição escolar, portanto, necessita tornar-se um ambiente de escuta e diálogo, que prioriza o bem-estar e a formação integral de alunos e professores. Para tanto, são indispensáveis qualificações para que os docentes possam abordar de maneira adequada e consciente temas sensíveis, como bullying, machismo e o uso responsável das redes sociais. É crucial que a escola compreenda as novas demandas e desafios impostos pelo contexto social vigente em que os adolescentes estão inseridos. 

Engana-se quem acredita que acontecimentos como os retratados na minissérie ocorrem exclusivamente em famílias socialmente classificadas como “desestruturadas”. Ao acompanharmos a trajetória da família Miller, descobrimos que jovens provenientes de lares estáveis, com pais presentes e acesso a uma boa instituição de ensino, também podem ser capturados pela violência extrema, sobretudo quando há ausência de diálogo. Isso demonstra que a responsabilidade vai além da esfera familiar, configurando-se como uma rede complexa de atores, na qual a escola exerce papel fundamental. Nesse sentido, a criação de Stephen Graham é cirúrgica ao expor que qualquer adolescente pode tornar-se Jamie. Assim, precisamos urgentemente quebrar o silêncio, superar as distâncias geracionais e envolver toda a sociedade na discussão sobre esse tema. 

REFERÊNCIAS 
A profundidade da violência nas escolas, segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública. Carta Capital, 2023. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/educacao/a-profundidade-da-violencia-nas-escolas-segundo o-anuario-brasileiro-da-seguranca-publica/. Acesso em: 20 jun. 2025. 
CAMILO, Bruna; GALETTI, Camila. “Adolescência”: a socialização dos jovens e o ódio contra as mulheres. Le Monde Diplomatique, 2025. Disponível em: https://diplomatique.org.br/adolescencia-a-socializacao-dos-jovens-e-o-odio-contra-as-mulher es/. Acesso em: 21 jun. 2025. 
GIL, Natália. “Adolescência”, a série: onde estamos errando?. Brasil de Fato, 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/colunista/cidade-das-letras-literatura-e-educacao/2025/03/28/ adolescencia-a-serie-onde-estamos-errando/. Acesso em: 20 jun. 2025.
Hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo Martins Fontes, 2013. 
PINSKY, Ilana. O que a série ‘Adolescência‘ nos ensina sobre o mundo secreto dos jovens. Veja. 21 de mar. de 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/mens-sana/o-que-a-serie-adolescencia-nos-ensina-sobre-o-mu ndo-secreto-dos-jovens/. Acesso em: 20 jun. 2025. 
Por dentro da ‘machosfera’, onde homens debatem reação ao feminismo e técnicas de sedução. BBC News Brasil, 2023. Disponível em:https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy90kg5l955o. Acesso em: 20 jun. 2025. 
WAKEFIELD, Jacqui. ‘Adolescência’: como surgiu a sinistra ‘machosfera’ retratada pela série. BBC News Brasil, 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgl0lxnrlezo. Acesso em: 20 jun. 2025. 

Eduarda Machado Severo é estudante do sétimo semestre do curso de Letras – Português, na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Campus Bagé. Atualmente, é bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) Letras.


“Esta é a coluna do PET-Letras, Programa de Educação Tutorial do curso de Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa, do campus Bagé. O programa, financiado pelo FNDE/MEC, visa fornecer aos seus bolsistas uma formação ampla que contemple não apenas uma formação acadêmica qualificada como também uma formação cidadã no sentido de formar sujeitos responsáveis por seu papel social na transformação da realidade nacional. Com essa filosofia é que o PET desenvolve projetos e ações nos eixos de pesquisa, ensino e extensão. Nessa coluna, você lerá textos produzidos pelos petianos que registram suas reflexões acerca de temas gerados e debatidos a partir das ações desenvolvidas pelo grupo. Esperamos que apreciem nossa coluna. Boa leitura”.

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