Ano 12 Nº 105/2024 Reflexões sobre a desprofissionalização da docência na Educação Infantil

Lucilene da Costa

Neste texto, busco refletir sobre os desafios que vivencio sendo uma professora formada em Letras e Pedagogia, atuando na Educação Infantil, principalmente ao perceber a pouca valorização que é dada à docência neste nível de ensino e o quanto somos habitualmente consideradas somente as “tias da escolinha”, pormenorizando toda formação profissional que está envolvida no nosso aprimoramento docente. 

A Educação Infantil trilhou um longo caminho até se tornar parte da educação brasileira. Inicialmente foi garantido o direito à educação das crianças de zero a seis anos, como um dever do Estado, através da Constituição Federal (1988), porém só foi reconhecida efetivamente como etapa da educação básica a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional-LDB (1996): 

Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. (LDB, 1996)

Assim, a escola de Educação Infantil deve ser compreendida como um espaço de aprendizagem e não apenas o espaço em que se prioriza somente o cuidado, a higiene e a alimentação da criança. Nesse sentido, a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2018) reafirma que o educar e o cuidar são indissociáveis na Educação Infantil, pois o cuidado não está separado do processo educativo. Porém, é importante compreender a dicotomia educar e cuidar que perpassa o ambiente da Educação Infantil e que por muitas vezes é confundida com uma forma assistencialista de educação.

Diante disso, ser professora na Educação infantil ainda carrega o estigma de “estar na escola para cuidar das crianças enquanto os pais trabalham”. Porém há uma linha tênue entre a docência na educação infantil e a valorização profissional dos docentes que atuam neste nível de ensino. Infelizmente ainda há resquícios de uma construção histórico-social que vê a professora de educação infantil como uma “tia”.

Como diz Freire (1997, p.9), ensinar é profissão que envolve certa tarefa, certa militância, certa especificidade no seu cumprimento enquanto ser tia é viver uma relação de parentesco”, e quando ocorre estes discursos de aproximação entre a profissão e a familiaridade, fica evidente a desvalorização do docente da educação infantil enquanto profissional formado para atuar com a primeira infância.

No espaço potente da escola de educação infantil, ocorrem as mais importantes aprendizagens da infância, sendo importante entender o valor de proporcionar uma infância repleta de explorações, vivências e aprendizagens significativas, as quais garantam os seus direitos de aprendizagens elencados pela BNCC, a saber: o conviver, o brincar, o participar, o explorar, o expressar e o conhecer-se. 

Estes direitos de aprendizagem, promovem ainda a apropriação de conhecimentos que favorecem o desenvolvimento integral da criança e ampliam seus repertórios de mundo, aprimorando e garantindo a manifestação das múltiplas linguagens da criança, tais como a linguagem oral, a linguagem escrita, a musical, a gestual, a artística entre outras. 

Conforme Bakhtin (1986):  

A verdadeira substância da linguagem não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada pela enunciação ou pelas enunciações. A interação constitui, assim, a realidade fundamental da linguagem. (BAKHTIN, 1986, p. 123)

Assim, a linguagem se dá a partir da interação e na educação infantil a interação é um dos eixos estruturantes das práticas pedagógicas, assim como o brincar. 

Dessa forma, para muitas crianças, a educação infantil é o contato inicial com um espaço de interação diferente do ambiente familiar, por isso, é importante entender que é ali naquele momento que as crianças estão se abrindo para um mundo de descobertas e de aprendizagens, as quais vão proporcionar uma base coerente para toda caminhada escolar daquela criança. 

Para que essas infinitas possibilidades de aprendizagem se tornem efetivas, é imprescindível a presença de uma professora que valorize e compreenda as potencialidades das infâncias e o desenvolvimento infantil. 

Nesse sentido, a BNCC (2018) nos aponta que 

parte do trabalho do educador é refletir, selecionar, organizar, planejar, mediar e monitorar o conjunto das práticas e interações, garantindo a pluralidade de situações que promovam o desenvolvimento pleno das crianças. (BNCC, 2018, p.37)

Então é preponderante que os professores de educação infantil tenham acesso à formação inicial e continuada que lhes possibilitem a apropriação de conhecimentos inerentes à prática pedagógica com as crianças. 

Percebo que os docentes têm buscado formação continuada para reafirmar seu papel de educadores e melhor desempenhar suas funções nas escolas, o que é visto por exemplo nos trabalhos desenvolvidos no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Línguas- PPGEL na Unipampa, pelas professoras Conceição (2021), Rodrigues (2022) e Pereira (2024), os quais evidenciam a pertinência do trabalho pedagógico na educação infantil a partir da literatura, explorando temáticas como letramento literário e educação para relações étnico-raciais, assim como corroboram com a relevância do aprimoramento profissional dos docentes para a efetivação de práticas significativas com as crianças.

Entretanto, o que vemos é que apesar das legislações que amparam a educação infantil, ainda há uma grande lacuna a ser preenchida, principalmente em relação ao reconhecimento e valorização da Educação infantil enquanto etapa crucial para a aprendizagem e desenvolvimento das crianças. É importante salientar ainda, que não podemos pensar em valorização profissional sem pensar em outros pontos que permeiam essa discussão, como por exemplo desmistificar a ideia de que para atuar na educação infantil é necessária somente uma formação em ensino médio; que qualquer pessoa pode educar/cuidar das crianças no espaço escolar sem mesmo uma formação adequada; que a escola de educação infantil ainda é vista com um caráter assistencialista.

Refletir sobre estes pontos pode ser o início da construção de um processo de valorização profissional que há muito é desejada por nós professores de Educação Infantil. É perceptível que a afetividade com que construímos as relações de interações com as crianças, é um dos fios condutores das aprendizagens na infância, porém precisamos consolidar um caminho em que ela não possa ser confundida com uma forma de menosprezar a nossa profissão.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986. 

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018. Disponível em: http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%207.611-2011?OpenDocument  Acesso em: 09 de nov. de 2024. 

BRASIL. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm Acesso em: 08 de nov. de 2024. 

CONCEIÇÃO, Sâmia Machado Reis da. Percursos formativos em educação antirracista e letramento literário na construção de uma proposta pedagógica com literatura infantil. 123p. 2021. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino de Línguas) – Universidade Federal do Pampa, Campus Bagé, Bagé, 2021.

FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar? 8ª ed. São Paulo: Olhos d’água, 1997.132 páginas.

PEREIRA, Viviam Lorena Pereira. Hora do conto: caminhos para inserção da educação para as relações étnico-raciais por meio da literatura infantil em um contexto de sala de aula de educação infantil. 2024. 158f.: il. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino de Línguas) – Universidade Federal do Pampa, Campus Bagé, Bagé, 2024.

RODRIGUES, Denise de Oliveira. Era uma vez… um carrossel: giros, paradas e metamorfoses de uma educadora. 182 p. 2022. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino de Línguas) – Universidade Federal do Pampa, Campus Bagé, Bagé, 2022.


Lucilene da Costa Alves
Graduada em Letras- Unipampa e Pedagogia- FAEL. Mestranda em Ensino de Línguas- PPGEL Unipampa. Professora de Educação Infantil em Bagé/RS e Dom Pedrito/RS.

Esse texto é parte do dossiê “Relatos De Experiências E Divulgação Científica Na Formação Continuada De Professores De Línguas Na Pós-Graduação”. Você pode encontrar os outros textos aqui:

https://junipampa.info/educacao/ano-12-no-102-2024-relatos-de-experiencias-e-divulgacao-cientifica-na-formacao-continuada-de-professores-de-linguas-na-pos-graduacao/

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