Ano 12 Nº 103/2024 Entrelugares: Educação Infantil e Letras, um diálogo traçado a partir da pesquisa-ação sobre formação de leitores literários

Por: Caroline Rodrigues Melo

 Fonte da imagem: Arquivo pessoal

O presente texto faz uma retomada crítica e reflexiva sobre minha formação acadêmica, as pesquisas realizadas e a atuação profissional. O entrelugar situa-se em relação a minha atuação como professora de Educação Infantil, minha graduação em Letras e, atualmente, ser aluna do Mestrado Profissional em Ensino de Línguas, dessa forma, sempre transitei entre os dois mundos, pelos quais tento estabelecer o diálogo através da pesquisa-ação sobre formação de leitores literários desde a tenra infância. 

Sempre me senti uma estranha no ninho, seja na época do curso de Letras, 2014 a 2017, quanto nos grupos de professores das escolas de Educação Infantil, área na qual atuo há dez anos. Para contar o porquê desse sentimento, de não pertencer, preciso recuperar meu percurso formativo e de atuação profissional. Em 2011 iniciei o Curso Normal (antigo Magistério), que consiste no curso de formação de professores em período integral, subsequente ao ensino médio. Lá descobri que, além de ser professora – sonho de criança que sobreviveu à adolescência – eu queria mesmo era atuar na Educação Infantil. Optei por fazer estágio na turma de Pré-escola I, com crianças a partir de quatro anos, ainda durante o estágio comecei a trabalhar como professora auxiliar na rede privada, com crianças a partir de dois anos. No mesmo ano, entre estágio e primeiro emprego, comecei a graduação, inesperadamente o curso de licenciatura em Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa. Confesso que a intenção sempre foi cursar Pedagogia, porém, por diversas circunstâncias, Letras se tornou a única opção viável. 

Pensei que cursaria apenas o primeiro semestre e pediria transferência, mas fui capturada pelo componente de Literatura para crianças e jovens, cursando-o descobri que o trabalho intuitivo que realizava com livros poderia e deveria ser qualificado. Em 2015 assumi minha primeira turma como professora regente, um Berçário II, com crianças a partir de um ano, um desafio gigantesco, pois, embora a formação no curso normal habilite ao trabalho desde a Educação Infantil até o quinto ano do Ensino Fundamental, as práticas de ensino acontecem apenas com crianças a partir dos quatro anos de idade. 

Logo, torna-se pertinente mencionar que a formação de professores para a Educação Infantil, considerando o contexto histórico passa por inúmeras transformações, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB nº. 9.394/96 descreve sobre a necessidade de formação desses professores, lançando novas perspectivas sobre os aspectos relacionados à formação dos profissionais para essa etapa de ensino (BRASIL, 1996). Anteriormente, a Educação Infantil era vista como assistencialista, sendo os profissionais que atuavam nesse nível de ensino vistos como cuidadores. Nesse sentido, Melo e Ximenes (2019, p.89) mencionam que “bastava o/a professor/a gostar de crianças e ter sensibilidade para que estivesse assegurado o bom desempenho de suas funções”. Essa perspectiva nos faz pensar que, por muitos anos, os professores que escolheram atuar na primeira etapa da Educação Básica eram considerados equivalentes a babás e/ou cuidadores. Romper com tais concepções, ainda hoje, é tarefa árdua, pois muitas famílias e, por vezes, até as instituições de ensino percebem o fazer docente apenas como voltado para os cuidados e para suprir as necessidades básicas das crianças. Toledo corrobora esse entendimento ao afirmar que

A presença de profissionais qualificados trabalhando nos estabelecimentos de educação infantil no Brasil é relativamente recente. Os docentes estiveram presentes nas escolas infantis desde os primeiros jardins da infância, sem, no entanto, nenhuma formação específica. Isso porque o cuidar e o educar não eram vistos como responsabilidades educacionais, e sim como um direito assistencial das famílias (2018, p. 122).

O Decreto nº. 3.276/1999 (BRASIL, 1999) dispunha que a formação para Educação Infantil e para os anos iniciais, aconteceria, exclusivamente, em cursos normais superiores. O termo “exclusivamente” foi substituído pelo “preferencialmente”, quando da alteração dada pelo Decreto nº. 3.554/2000 (BRASIL, 2000). Logo, é possível verificar que as mudanças ocorridas são recentes e que há um longo caminho a ser percorrido. Entre tudo isso, estou eu, uma professora licenciada em Letras, que pesquisa sobre formação de leitores literários em turmas de berçário. Meu Trabalho de Conclusão de Curso foi uma pesquisa-ação, na qual, além de pesquisadora, também desenvolvi e apliquei três projetos de leitura para bebês e crianças bem pequenas. Segundo Tripp (2005, p.445), a pesquisa ação é “[…] principalmente uma estratégia para o desenvolvimento de professores e pesquisadores de modo que eles possam utilizar suas pesquisas para aprimorar seu ensino e, em decorrência, o aprendizado de seus alunos […]”. Assim, é válido afirmar que não apenas o pesquisador/professor qualifica sua formação, mas há possibilidade de mudanças no seu contexto de atuação. Portanto, em 2017 se iniciou a ideia de unir os aprendizados obtidos na graduação, colocando-os em prática a partir do desenvolvimento, aplicação e análise dos projetos envolvendo o incentivo à formação leitora de bebês e crianças bem pequenas. 

Porém, foi preciso romper o estigma que a professora de berçário costuma possuir de ser apenas cuidadora e a concepção de que as práticas seriam voltadas apenas para os cuidados. Consequentemente, contar às pessoas que eu incentivava a formação leitora dessas crianças foi, ainda é, um trabalho de defesa diária. Sobre o desenvolver projetos, especificamente na creche, período descrito pela Base Nacional Comum Curricular – BNCC, como a faixa etária que vai de zero a três anos e onze meses, Barbosa e Horn abordam que:

Entre os diferentes níveis de escolaridade, a creche aparece como aquele no qual muitos acreditam não ser possível trabalhar com projetos de trabalho. Alguns fatores corroboram para isso, como, por exemplo, o fato de essa etapa de ensino estar atrelada, na sua origem, às questões relativas somente a cuidados com saúde e com a higiene e, consequentemente, não ser necessário preocupar-se com a aprendizagem. Nesse entendimento, as crianças muito pequenas não necessitariam de um trabalho didaticamente organizado, pois ainda não teriam condições de aprender. Com os avanços das pesquisas na área e em estudos de teóricos mais contemporâneos, tal crença mudou radicalmente. Os estudos de Piaget, Wallon e Vygotsky, entre outros, demonstram que as crianças aprendem desde que nascem (2008, pp. 71-72).

Considerando que é relevante desenvolver projetos com a referida faixa etária e que é reconhecida a importância do trabalho com leitura literária, desde a tenra infância, Reyes (2010, p. 61) aponta que “Muito antes de serem alfabetizadas, as crianças têm enorme capacidade, maior até que a dos adultos, para decifrar códigos não verbais”. Além disso, conforme a referida autora (2010, p.13) “[…] sabemos que os bebês não leem, no sentido convencional da palavra. Mas também sabemos que a leitura tem suas raízes na complexa atividade interpretativa que o ser humano desenvolve desde seu ingresso no mundo do simbólico.”. É inegável que o curso de Letras me deu subsídios para tornar-me uma professora formadora de leitores, mesmo que, por vezes, meus colegas ou mesmo os professores não entendessem o que uma professora de bebês persistia nesse curso de graduação. Ressalto que em nenhum momento pensei em de fato atuar como professora de língua portuguesa ou literatura. 

Retomando a história do pertencimento ao ninho da Educação Infantil, mas não do acolhimento, pois minhas colegas de escola ou de etapa de ensino também não entendiam essa formação em dois lugares, por vezes, tão distintos. Então, por muitas vezes, quando tentei semear os projetos, incentivando a formação leitora literária das crianças na escola ouvia as seguintes afirmações: “não fazemos assim, na Pedagogia a gente não vê desse jeito o trabalho com texto”. Abro um parênteses gigante aqui, mas os cursos de Pedagogia das profissionais que conheci e com as quais já trabalhei não ofereceram a elas formação sobre literatura ou sobre como incentivar e/ou formar leitores, tampouco a utilizar a leitura literária em sala de aula. O que infelizmente é visto e difundido, em algumas situações, é a utilização do texto como pretexto, na qual vemos os livros sendo usados como pretextos para explorar temas, deixando os aspectos relacionados à formação leitora das crianças em plano de fundo ou mesmo inexistindo a preocupação com essas questões. 

O ingresso no Mestrado Profissional em Ensino de Línguas lançou luz para, além de repensar os projetos desenvolvidos na turma de Berçário II, recomeçar a pesquisa-ação sobre fomento à formação leitora literária dessas crianças, dessa vez, com uma nova ótica e novos objetivos. Acredito que estar nesse entrelugar me ofereceu a possibilidade de observar não só os aspectos relacionados à formação leitora das crianças, mas também para defender o fazer docente do profissional que atua, e deve atuar, com muita responsabilidade e atento a sua formação continuada na Educação Infantil. Penso que a Pedagogia precisa dos profissionais das Letras para rever e aperfeiçoar os assuntos relacionados ao trabalho com leitura em sala de aula, mas também sei que os professores de Letras aprenderiam muito com os pedagogos. Logo, espero que essa fronteira, na qual atuo e sigo entrelaçando os dois mundos, um dia se aproxime, se fortaleça e construa um diálogo significativo.  

Texto elaborado no componente de Teoria e Prática no Ensino de Línguas ministrado pela Professora Doutora Sara dos Santos Mota. 

Referências 
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_publicacao.pdf. Acesso em 08 de outubro de 2024. 

BRASIL. Decreto nº. 3.276/1999, de 6 de dezembro de 1999. Dispõe sobre a formação em nível superior de professores para atuar na educação básica, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 1999.  Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1999/decreto-3276-6-dezembro-1999-369894-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 07 de outubro de 2024. 

BRASIL. Decreto nº. 3.554, de 7 de agosto de 2000. Dá nova redação ao § 2° do art. 3º do Decreto nº 3.276, de 6 de dezembro de 1999, que dispõe sobre a formação em nível superior de professores para atuar na educação básica.  Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 2000.  Disponível em https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=DEC&numero=3554&ano=2000&ato=b48kXSE1kMNpWTdcd. Acesso em 07 de outubro de 2024. 

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Lei Federal n.º 9.394, de 26/12/1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm. Acesso em 07 de outubro de 2024. 

BARBOSA, Maria Carmen Silveira; HORN, Maria da Graça Souza. Projetos pedagógicos na educação infantil. Porto Alegre: Grupo A, 2008.

MELO, Geovana Ferreira; XIMENES, Priscilla de Andrade Silva. Políticas de formação de professores para a educação infantil: dos dilemas às transformações possíveis. In: SILVA, Janaina Cassiano; SILVA, Altina Abadia (Orgs.). Criança, práticas educativas e formação docente. São Paulo: Paco Editorial, 2019.

REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância. São Paulo: Global, 2010.

TOLEDO, Maria Elena Roman de Oliveira. O cuidar e o educar na educação infantil. In: MOLETTA, Ana Keli; BIERWAGEN, Gláucia Silva; TOLEDO, Maria Elena Roman de Oliveira. A educação infantil e a garantia dos direitos fundamentais da infância [recurso eletrônico]. Porto Alegre: SAGAH, 2018.

TRIPP, David. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 31, n. 3, p. 443-466, set./dez. 2005.

Caroline Rodrigues Melo 
É professora de Educação Infantil, na rede privada de Bagé/RS, e apaixonada pela formação de leitores. Possui Curso Normal, Licenciatura em Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Unipampa, especialização em Educação Infantil pela UERGS, em Coordenação Pedagógica e Administração escolar, Supervisão e Orientação, ambas pela Uniasselvi. Atualmente, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Línguas (PPGEL) – Mestrado Profissional em Ensino de Línguas (MPEL) pela Universidade Federal do Pampa – Unipampa campus Bagé. 

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