Ano 05 nº 102/2017 – A Mulher de Branco

face-2662919_960_720Jociele Corrêa

Mudei meu quarto para o segundo andar. Já não podia mais olhar para aquelas mesmas paredes verdes. Queria mudar de casa, de cidade, de país, de mundo, mas eu sabia que seria inútil. A dor que aqui dentro repousava era maior do que qualquer ímpeto de movimento.

Alojei-me no antigo quarto de hóspedes. Móveis, eu trouxe poucos. Uma cama, nova, porque já não suportava a velha. Um criado-mudo ao lado da cama onde posso repousar um livro qualquer… E meus óculos, sem os quais não vejo quase nada. Trouxe também uma escrivaninha e a coloquei em frente à janela, ampla, com vista para um jardim.

Durante a primavera nós nos deliciávamos com a paisagem que crescia além da janela. Lindas flores desabrochavam e o perfume percorria a casa inteira. As abelhas vinham fazendo zum zum e os beija-flores nos enfeitiçavam com suas asas mais que ligeiras. Um belo quadro para se pintar.

Mas agora não era primavera, era inverno, e as flores já não estavam lá.

Morreram.

A grama cresceu, as árvores cresceram cheias de ervas daninhas. As plantas foram devoradas pelas formigas e as abelhas há muito não frequentavam o local. Os beija-flores, ah, esses não desistem, veem todos os dias procurar o resto de alguma coisa. Não há nada.

Sento, então, em frente à janela e fico olhando o vazio. O rosto daquela mulher me vem nítido na mente. Corpo esguio, loira, cabelos perfeitamente lisos e perfumados. O jaleco de um branco tão alvo; uma neutralidade surreal. Balanço a cabeça, como para afastar aquele inseto voador repugnante que insiste em pôr suas patas em nós. Fecho os olhos, abro, respiro fundo e lá está ela. A mulher de branco.

Ela entrou no quarto como se não quisesse nada, com feição de “ops, errei de quarto!” Passos comedidos, um olhar sem expressão que me encarava fixo sem dizer nada. O olhar dela me intimidava. Um manequim da loja de confecções do shopping tinha fugido e ido ao hospital atrás de mim. E agora, na minha frente, não me dizia nada, mas aquele silêncio estava me dizendo muito.

Eu não queria ouvir. Não, eu não queria ouvir. Não. Não. Não. Não. NÃO!

Levantei e disse:

 

–  Que bom que já posso ir para casa! Estava ficando ansiosa, mas eu sei que isso não faz bem pro bebê, então tratei de me acalmar. Agora estou bem. Me sinto tão bem! Obrigada, viu!?

–   Amor, pega a minha bolsa? Precisamos ir logo porque a essa hora o trânsito já está uma confusão e…

Falei tudo isso tão rápido que não devo ter levado uma fração de segundo. Falei alto e forte, não para convencê-los de nada, mas para me ouvir bem e tentar acreditar no que eu estava dizendo. Falei alto, mas não pude deixar de ouvir o suspiro do meu marido. Uma expiração. Dolorosa.

A enfermeira continuava me olhando. Não dizia nada, apenas inclinou ligeiramente o queixo contra o peito, de modo que parecia tentar me ver melhor. Nenhuma mudança de expressão. Nada. Vazio. Só um olhar fixo e um prolixo silêncio.

O quarto desembocava um corredor que, em seguida, desembocava para outros quartos. Saindo pela porta, passando por três quartos, dobrando à direita e depois à esquerda, havia um pequeno saguão e um relógio que fazia tic tac tic tac tic tac.

Uma hora. Duas horas. Três horas. Eu suava, minhas pernas já estavam fatigadas e nós estávamos ali, a enfermeira me olhando e o Ricardo olhando para os pés. Será que ele a tinha achado bonita? Estaria ele envergonhado? Sempre fez a linha Don Juan, por que não estava encarando a moça como eu fazia? Foi engraçado, nós estávamos ali e ninguém dizia nada.

Durante uma hora eu fiquei esperando, paciente em via dupla. Duas horas depois, eu já me contradizia e era INpaciente. Três horas depois, eu ouvia uma porta ranger no quarto andar e as moscas voando em volta do lixo no outro quarteirão. Quatro horas depois, ela expirou e abriu levemente a boca, de onde saíram uma série de palavras absurdas, sons encadeados e rítmicos:

– Infelizmente, não resistiu, coração, parou de pulsar, veio a óbito, lamentamos muito, fizemos o possível…

Agora era minha vez de não fazer expressão. Inclinei meu queixo e foquei meu olhar bem dentro dos olhos dela. Disse, devagar e calmamente:

-Não, você está enganada. Meu bebê está aqui. Vivo. Eu posso senti-lo.

Coloquei a mão na minha barriga e senti um arrepio, como se tivesse colocado a mão no congelador da geladeira. Olhei para o Ricardo, incrédula, e vi as lágrimas rolando pelo seu rosto. Os olhos e o nariz vermelhos e uma expressão de dor semelhante a que ele fez quando quebrou a perna, logo depois do nosso casamento. Mas agora havia acontecido algo mais marcante que isso, ele havia quebrado as duas pernas, os dois braços e tinha levado um chute em cheio no saco.

 

Eu só senti um soco na boca do estômago. E uma pancada com uma barra de ferro nas duas pernas, por trás e na altura do joelho. E depois veio uma formigaçãozinha de leve nas pálpebras… cócegas… Meu corpo todo entro em uma espécie de barato, foi se soltando, as luzes piscando e… Escuridão.

Acordei no outro dia, pela parte da tarde. Estava desconfortável, senti uma dor na lombar e nos quadris. Mau jeito de dormir, pensei. Mexi o braço e puxei o tubo do soro. Minha pele estava roxa no local onde foi posta a agulha. Olhei em volta. Paredes verdes. Um verde bem clarinho. Verde bebê. Ao meu lado, um vaso com rosas brancas, uma jarra e um copo.

Estava um pouco zonza ainda e minha mente estava vazia. Só um alerta de sede piscando incessantemente. Ajeitei-me na cama, peguei a jarra, enchi o copo e tomei. Suspirei: Que alívio! No que eu solto o copo no criado-mudo, a porta range e espaçadamente uma silhueta surge na porta.

-Ah, que bom que você acordou!

Era o Ricardo.

Quem? O Ricardo. Meu marido. Casamos em 2007. Há três anos. Moramos em Laranjeiras. A cidade recebeu esse nome por causa dos laranjais. Tem lógica, né? As crianças se deliciam com as frutas. Sobem nas árvores, se arranham, mas nem ligam. O Ricardo gosta de ficar vendo. Adora criança! E agora que estamos esperando um fi…

UM FILHO. UM FILHO. MORTO. LEMBREI.

Fiquei olhando pro meu marido na porta. Estava vendo bem, mas depois eu já não estava vendo mais. Visão turva, inundação.

E choveu durante toda a primavera. A casa? Morreu. O trabalho? Morreu.

O gato? Partiu. O Ricardo? Partiu.

Daqui da janela eu enxergo a curva que vai dar na rua do parquinho. Quando compramos a casa ficamos felizes porque o parque ficava perto, assim, quando nosso filho nascesse, iria ser fácil levá-lo lá todos os dias.

Eu podia ter vendido a casa ou ateado fogo. Mas eu sabia que não ia adiantar. E também, eu estava tão cansada, mas tão cansada que só de pensar em ir à cozinha e pegar um isqueiro já me sentia exausta.

 

Então, eu fico em frente à janela. Aqui tenho tudo que preciso. Nada. Paredes brancas. Café preto. A vista da janela… Por vezes vejo passar uma mulher de branco, apressada. Balanço a cabeça, respiro fundo e lá está ela.

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