Ano 10 nº 022/2022 – Uma reflexão sobre a obra El día en que el Papa fue a Melo, de Aldyr García Schlee (1991), e sobre o filme El baño del Papa (2007).
Por Kassandra Naely Rodrigues dos Santos
Tanto a coletânea de contos El día en que el Papa fue a Melo, de Aldyr García Schlee, publicada em 1991, quanto o filme El baño del Papa, lançado em 2007, são obras ficcionais que partem de um mesmo acontecimento histórico, a visita do Papa João Paulo II à pequena e pacata cidade de Melo, fronteira entre Uruguay e Brasil, no dia 8 de maio de 1988.
A reportagem Milagro a 30 años del papa en Melo, publicada no dia 6 de maio de 2018 no jornal eletrônico El País, apresenta com detalhes, através de relatos reais, a mobilização da população local que investe o pouco dinheiro que tem para comercializar produtos e serviços com a esperança de aumentar a renda financeira, porém, resultando em prejuízo para muitos.
Mobilização essa que inclui o tráfego de uma grande parte de trabalhadores, conhecidos por kileros, que se dedicam a pequenos contrabandos, percorrendo frequentemente o trajeto de Melo a Aceguá, aqui no Brasil.
Todo esse contexto social de movimentação por parte dos moradores locais com a passagem do Papa é apresentado tanto no filme, quanto no livro, que se assemelham por desenvolver suas narrativas a partir de um mesmo acontecimento, todavia, com diferentes histórias e perspectivas.
Na coletânea de Schlee, mais especificamente no quinto conto, Melo era una fiesta, é narrada a mobilização dos moradores locais para lucrarem de alguma maneira com a visita do Papa, investindo assim o pouco dinheiro que possuíam:
El día en que el Papa fue a Melo mucha gente esperaba que se concretase el
bíblico acontecimiento de la multiplicación de los siempre escasos panes y
peces de la mesa familiar. Habitantes de la campaña, tipos de los alrededores,
vecinos de La Concordia, hasta los que en los fines de semana se veían
obligados a hacer contrabando hormiga en la frontera con el Brasil, todos y
cada uno descubrieron su manera de aprovechar la visita festiva y de no perder
la oportunidad de aumentar en algo lo poco que no tenían. (SCHLEE, 1991, p.
41)
Entretanto, assim como ocorrido na vida real, “El Papa vino y se fue; ¡y listo!” (SCHLEE, 1991, p. 42), deixando muitos apenas com prejuízos.
A situação retratada no filme, El baño del Papa, assemelha-se ao conto supracitado. Beto, pai de família que trabalha com contrabando, investe as economias de sua mulher na construção de um banheiro para os visitantes do evento, mas a ideia não se concretiza como esperado, pois ninguém utiliza o banheiro durante a festividade.
Destaco que, antes do início do filme, o espectador é avisado de que “Los hechos de esta historia son en esencia reales y sólo el azar impidió que sucedieran como aquí se cuentan”, mostrando que há uma relação entre a narrativa cinematográfica e a realidade.
Desta forma, ambas obras retratam os preparativos e as expectativas de diferentes habitantes locais sobre o mesmo acontecimento histórico, que aparece internalizado no desenvolvimento das narrativas.
Penso que as personagens são verossímeis, pessoas humildes com características humanas, sem heroísmo ou vilania. Destaco duas personagens marcantes: Martiana, protagonista do terceiro conto de Schlee intitulado Milagro e Carmen, uma das protagonistas do filme.
Martiana, a mártir, é uma senhora simples e sofrida, com uma devoção que encontramos facilmente em nossos parentes mais velhos, pois “Es que ella es como toda esa gente que ya no tiene más en qué creer y que, creyendo tan poco en nada, termina creyendo en todo.” (SCHLEE, 1991, p.29).
Esse conto me encantou pela humildade de Martiana, que, acostumada com a pobreza, se pudesse pedir algo ao Papa, como se o mesmo fosse um santo capaz de concedê-la milagres, pediria coisas simples como açúcar para adoçar o mate e o café dos enteados, um pouco de macarrão ou farinha para as tortas fritas.
Assim como Martiana, no filme, a personagem Carmen, esposa de Beto, que no início acredita que trabalhar e ganhar dinheiro com a vinda do Papa é motivo para Deus castigar, quando questionada por seu marido sobre a escolha de um presente com o lucro do comércio, imediatamente pensa em coisas simples e que também trarão felicidade a outras pessoas, tais como amido ou a quitação de uma conta de luz.
Carmen chega a sugerir a venda de medalhinhas brasileiras de santos, ideia que, subestimada por Beto, torna-se posteriormente uma das fontes de renda mais lucrativa durante o evento.
Considero essas duas personagens marcantes pela simplicidade, uma devoção mais popular e, principalmente, por pensar no outro antes de si mesma. Assim como representadas em ambas obras, acredito que as fronteiras, lugares normalmente ofuscados pela região central, possuem uma forte cultura que surge da união das tradições e costumes pertencentes a dois países. Há uma dualidade de nacionalidade que constitui em uma terceira identidade com costumes, tradições e até linguagem própria, onde os habitantes se sentem mais pertencentes àquele local do que a seu próprio país de origem.
Por eu sempre ter morado em Bagé, identifiquei-me com o ambiente de ambas obras, principalmente com a descrição desses espaços familiares de reunião, confraternização e coletividade. Alguns elementos retratados nas narrativas também estão presentes em nossa cultura, tais como: o pancho, o chimarrão, o churrasco e algumas palavras pertencentes ao portunhol.
Referências:
BARDESIO, Miguel. Milagro a 30 años del papa en Melo. El País. Montevideo, Uruguay. 6 de mayo de 2018. Disponível em: https://www.elpais.com.uy/que pasa/milagro-anos-papa-melo.html. Acesso em: 24 de agosto de 2021;
SCHLEE, Aldyr García. El día en que el Papa fue a Melo. Montevidéu, Uruguay: Ed. De la Banda Oriental SRL, 1991;
El baño del Papa. País de origem: Uruguai. Ano de estreia: 2007. Gênero: drama. Direção: César Charlone e Enrique Fernández, com César Troncoso, Virginia Méndez, Virginia Ruiz, Mario Silva, Henry De León, José Arce, Nelson Lence, Rosario De Los Santos. Disponível em <https://vimeo.com/136403987>. Acesso: 18 de agosto de 2021.
Texto escrito durante o componente curricular de “Fronteira e Sociedade” com a orientação da professora Dra. Sara dos Santos Mota.
Kassandra Naely Rodrigues dos Santos é discente do Curso de Licenciatura em Letras – Línguas Adicionais: Inglês e Espanhol e Respectivas Literaturas (UNIPAMPA) e doutoranda em Letras pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: kah_naelly@hotmail.com / kassandrasantos.aluno@unipampa.edu.br