Ano 10 nº 071/2022 – Suportaria ficar mais um pouquinho?

Por Alessandra Bonilha, Clara Dornelles, Luiza Schafer e Mayra Benites

Você é uma menina de 10 anos. No lugar em que deveria estar segura, na sua própria casa, é vítima de abuso sexual. Você vai com sua mãe ao médico e lá descobre que está com 22 semanas de gestação. Sua mãe pede ajuda e, por causa disso, o Conselho Tutelar manda você para um abrigo. Mas o seu direito de abortar é negado. Você chegou com 2 semanas de atraso. Provavelmente não entende o que aconteceu, mas uma promotora te explica, do jeitinho dela, que se fizer o aborto agora, será quase um homicídio. Você suportaria ficar mais um pouquinho?

Daí você abre o Instagram e lê um post dizendo que o direito histórico das mullheres ao aborto é proibido nos EUA. Você pensa que leu mal a notícia, visita alguns sites, não acredita que um direito mais velho do que você, uma conquista que inspira tantas outras mulheres a lutarem pela descriminalização do aborto no mundo, possa acabar assim. Seu otimismo está a conta-gotas, mas você lembra que é preciso continuar lutando.

Então, você pesquisa um pouco mais na internet e aparece uma matéria sobre uma atriz brasileira que relata sua história de vitima de estupro. Ela resolve contar essa história por obrigação, após ser exposta nas redes sociais e atacada, até então, por sua suposta gravidez, por especulação. Assim, escreve uma carta aberta e explica a entrega legal do bebê à adoção. Ela, mesmo seguindo todos os procedimentos legais, é atacada. Afinal, como pode um corpo feminino, que nasce para procriar, dotado de todas as habilidades maternas, negar-se a isso?

É quando lembra do caso da aluna da Unipampa que foi vítima de importunação sexual no ônibus no trajeto para a universidade. Você lembra das vezes em que corpos masculinos roçaram em você no transporte indo para a escola. Das vezes em que tentava afastar o seu corpo de gestos invasores, e depois tinha vergonha, apesar de ser você a vítima. Vem à memória a raiva silenciada por todos os assédios que já vivenciou e sente orgulho da coragem da moça que não se calou.

Amanhece um domingo que parece igual aos outros. Uma certa preguiça no sol que esfria na  manhã bajeense. Você abre o portal de notícias e lê que jovem advogada é assassinada ao tentar apartar uma briga entre um homem e uma mulher, na cidade de Bagé. Vão dizer que em briga de marido e mulher não se mete a colher, que ela não deveria ter interferido, mas você não vai deixar que mais uma vez a vítima seja a culpada; que mais uma mulher seja julgada por não ter se omitido. E sem saber, a próxima vítima é você. Depois do ocorrido, você recebe homenagens por ter arriscado a própria vida pelo bem de outra igual, mas ainda assim, mesmo não estando mais aqui, é alvo de julgamentos, porque embora a culpa fosse do homem, se apanha é porque quer e todas nós resistiríamos mais um pouquinho.

Você, exausta ao final de uma semana inteira lendo, todos os dias, um novo caso de violência para com o seu gênero, se sente vulnerável, exposta, raivosa e até um pouco arisca. O domingo vai se acabando e junto dele se vai o pouco de segurança que ainda restava. Você respira fundo. Não há o que possa ser feito do dia para a noite. Se pergunta que abusos e agressões estão por vir agora. Sente medo de ser a próxima, como se já não tivesse sido antes. Sente medo por suas familiares, por suas amigas. Sente ódio. E, ainda assim, orgulho porque sabe que não vai desistir. Sabe que nenhuma de nós vai desistir, não importa o quanto piore. Sabe que não está sozinha Se der vontade de desistir, sabe que estaremos juntas, não importa o que piore. Entende que são atos de força e coragem para expor a agressão (e não a vergonha, porque é um crime) que trazem as mudanças. Então, você se deita pronta para usar todos esses sentimentos ruins como combustível para voltar à luta ao começo de mais uma segunda, terça, quarta, quinta e sexta até o fim dos dias.  E adormece com consciência de que ninguém tem o controle, muito menos poder pelo seu corpo, que é por isso que vai se levantar e fazer o que precisa ser feito.

Após refletir sobre sua força e necessidade de continuar, decide descontrair um pouco nas redes sociais, porque, após tantas notícias ruins, merecemos um pouco de paz. Então, ao rolar o feed, você é pega de surpresa pela notícia de que mais um corpo feminino havia sido violentado, desta vez um corpo em trabalho de parto. O abusador? Um profissional da saúde, um anestesista. Contraditório, não? Alguém que deveria livrá-la da dor acaba por causar-lhe traumas incuráveis com uma seringa.  

Corpos, meros corpos? Pessoas? Seres humanos? Não, ‘só’ mulheres. Mulheres que têm vidas, que têm sentimentos, que têm amores e dores. Mulheres que sofrem dia após dia, seja por experiência própria, seja por sororidade. Mulheres que implicam, replicam e suplicam por segundo de paz e todos os dias se perguntam “eu suportaria ficar mais um pouquinho?” Será mesmo que deveríamos ter que suportar? 

No final, todas nós sabemos que não deveríamos suportar, sabemos que essa culpa não é um fardo que as mulheres devem carregar. Mas somos vítimas de um sistema, e ele não dá indícios que deixará de nos oprimir. Mesmo com tanta luta, com tanta força, juntas, de mãos dadas, quando algo ruim acontece aqui, reflete acolá e é sucedido por tantos outros fatos que embrulham ainda mais nossos estômagos e afasta, ainda mais, a luz no fim do túnel. Porque no fim, todas temos consciência da misoginia e do ódio que nos cerca. E, embora sejamos conscientes de nossa força, somos também, martirizadas pela coerção masculina.

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