Ano 08 nº 238/2020 – Pensar a poesia: o além-do-poema em Marília Garcia/ Coluna Mariane Rocha
Por Mariane Rocha
poderia começar de muitas formas
e esse começo poderia ser um movimento ainda sem direção
que vai se definindo
durante o trajeto
poderia começar situando o tempo e o espaço
contexto hoje é quarta-feira dia 27 de novembro
e estamos no 32 andar do centro universitário maria antonia
também faria uma pergunta
nesse caso com quem estou falando aqui hoje?
poderia começar contando que me mudei para são paulo
há exatos 3 meses
e que esse convite do mauricio
foi como um gesto de
delicadeza e acolhida
pensando bem poderia resumir
minha curta experiência nesta cidade
com a palavra delicadeza
poderia começar de muitas formas
mas escolhi começar com uma pergunta
(Blind light – Um teste de resistores)
Olá, leitores/as,
Soa irônico o fato de que, apesar de eu estudar e escrever páginas e páginas sobre poesia, eu considere difícil falar sobre poesia e, mais especificamente, sobre determinadas poetas. É o caso da Marília Garcia, uma das autoras que eu estudo na minha tese de doutorado. Acontece que, justamente por eu falar dela academicamente, em alguns momentos, se torna complexo voltar para meu lugar inicial, de onde parto, o lugar de leitora. Mas foi a partir dele que eu entrei em contato com essa poesia tão singular, quando eu ainda não conhecia nada sobre essa poética (aliás, eu acho muito interessante esse exercício, adentrar em um livro não sabendo nada sobre ele!), mas o título do livro Câmera lenta chamou a atenção dos meus olhos já tão interessados nos diálogos entre literatura, cinema e fotografia.
Dentre as várias possibilidades de ser poesia, a lírica da Marília me encanta por isso que eu chamo de movimento. Os versos da poeta nos levam para um além-do-poema. Para o depois do poema. Para o entre-lugar do poema. Ler a poesia da Marília, assim, é traçar caminhos, pensar estratégias, refazer os percursos que foram feitos pelo eu lírico – que tantas vezes se confunde com um eu biográfico e exige que as distinções, em outros períodos tão claras, sejam repensadas. Poesia-pensamento. Poesia-estratégia. Repensar a poesia. Testar a poesia, nas palavras da própria poeta.
Marília estreou na poesia com o livro 20 poemas para o seu walkman, publicado pela editora 7 Letras, em 2007. Já no primeiro livro, a poeta chamava atenção pela sua linguagem elaborada e pelas aproximações intertextuais com outras vozes líricas. Depois dele, publicou os livros Engano Geográfico, Paris não tem centro, Um teste de resistores, também pelas 7 letras. Em 2017, lançou pela Companhia das Letras aquele que primeiro me capturou, Câmera lenta, livro responsável por trazer para a poeta o Oceanos, um dos principais prêmios de literatura de língua portuguesa. Seu último livro, parque das ruínas, é de 2018 e apresenta o olhar da poeta para toda sua obra, já que nele poemas que já apareciam em livros anteriores são reelaborados e expandidos e há uma constante menção aos livros e processos prévios – aliás, esse movimento contínuo de retomada da sua própria poesia é uma das características que considero centrais na lírica da Marília.
[TESTAR OS RESISTORES]
em 2014 publiquei um livro que era um teste
e que conversava com o livro de hocquard
tentei incorporar algumas ferramentas do ensaio
para dentro do poema
será que assim daria para ver
a carga teórica de um poema?
depois de publicado o livro me perguntaram:
por que você insiste em chamar de poema?
será que o poema continua sendo poema?
será que o poema deixa de ser poema
por que se confunde com outro gênero?
será que este teste poderia ser um ensaio?
quais os limites de cada um? quais as medidas?
ferramentas? restrições?
o teste inclui fazer perguntas
o teste inclui ter parâmetros
(O poema no tubo de ensaio – parque das ruínas)
Isto que estou nomeando de além-do-poema é a evidenciação do processo no resultado final: os poemas trazem marcas da escrita e da reescrita, falam desse processo, se apresentam ao/à leitor/a numa metalinguagem que vai além da reflexão acerca da inspiração e chega até as camadas mais profundas daquilo que efetivamente compõe o trabalho lírico da poeta. Assim, a partir dos poemas longos e fragmentados de Marília, ficamos sabendo como o poema foi construído, qual a sua repercussão entre os/as leitores/as e que estradas o poema percorreu antes que chegasse até nós em formato de livro.
Outra faceta desse entre-lugar do poema são os constantes diálogos estabelecidos com outros/as poetas e autores/as, artistas visuais e cineastas. O poema nos leva para uma tradição literária-cultural diversificada, a partir de uma rede de construções complexas que vão nos acompanhando ao longo dos livros de Garcia. Assim, a lírica da Marília é um lugar de encontro para elaborarmos nossas próprias concepções de poesia – um convite para a busca das entranhas do poema, que se repete ao longo dos livros.
17.
a poeta polonesa wisława szymborska diz que sente dificuldade
de continuar um discurso depois de já ter começado
por causa do assunto que está tratando a poesia
por que é difícil falar de poesia?
quando escrevo um poema
procuro uma espécie de abertura de repetição de diálogo
para pensar o processo de escrita em termos práticos
enumero as ferramentas que tenho
à minha frente
enunciados filmes narrativas google
poemas recortados copiados à mão
traduções jornais um romance lembranças diversas
alguma chateação frases
que serão transportadas
um fone de ouvido tocando o que eu quiser ouvir e
alguma perplexidade diante de algo que fiz de errado
que disse que ouvi ou de uma cena que vivi
(Blind light – Um teste de resistores)
Entre as tantas possibilidades de ser poesia que estão aqui, existindo na contemporaneidade, as formas poéticas da Marília se destacam por nos proporem perguntas, mais do que nos darem respostas. Ler a poeta carioca, no ritmo fluido que a lírica nos impõe (ou nos permite), é a possibilidade de experimentar os deslocamentos e os furos na linguagem que são matéria para tantos de seus escritos. É a possibilidade de experienciar o além-do-poema sem sairmos, em primeiro lugar, dos versos nos quais estamos inseridos. A leitura da Marília se faz também na releitura e a cada reencontro nos deparamos com um poema novo, que atualizado pelo/a leitor/a, nunca se encerra em si mesmo. É que Garcia é generosa e deixa espaço para que nós nos tornemos, assim como ela, um pouco ensaístas e filosóficos sobre os lugares que a poesia (pode) ocupa(r). Espero que vocês aceitem o convite da autora e se tornem, também, um pouco poetas com ela, a cada página virada.
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Para ler o poema “Blind light” na íntegra: https://drive.google.com/file/d/1G5U_vhQDXrfbzImScEux6PEeu_0BRjh7/view?usp=sharing
Para saber mais sobre a poeta: https://www.youtube.com/watch?v=hbPMiKAFo-M&ab_channel=Pr%C3%AAmioOceanos
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Mariane Rocha é leitora desde que se conhece por gente. Graduada e mestra em Letras, atualmente é professora de literatura e língua portuguesa no IFSul, em Bagé. Estuda poesia contemporânea e suas articulações com fotografia e cinema no doutorado em Letras da UFPel.