Ano 08 nº 153/2020 – O PODER DO TICO
Leandro de Araújo
O tico é a coisa mais poderosa do mundo. Sério! E não é de hoje!
Para quem não é do Rio Grande do Sul e está se perguntando quem é esse tal de tico, eu explico. É um apelido que se dá aqui no estado mais ao sul do Brasil para pênis. Um nome fofo, assim como “piu-piu” ou “pinto”. Não riam! E é sim uma corruptela da palavra espanhola “chico”, que significa “garoto” ou “pequeno”. Não adianta negar.
Pois bem. Até cerca de dez ou doze mil anos, quando a humanidade ainda não era organizada em cidades, não havia qualquer distinção na organização social entre homens e mulheres. O tico não fazia qualquer diferença quando os grupos caçadores e coletores se reuniam para conviver e sobreviver. Com a “descoberta” da agricultura, as mulheres começaram a perder o espaço de trabalho na cadeia social, pois, com a taxa de natalidade aumentando progressivamente, seu papel como provedora diminuía sensivelmente. Assim foi de forma progressiva, até que por volta de 1.800 a.C. um rei mesopotâmico chamado Hamurabi escreveu 282 leis, conhecidas historicamente como o Código de Hamurabi, que determinava, entre outras coisas, que a mulher era inferior ao homem. Sim, este é o primeiro registro de leis organizado e, entre outras coisas, deixava claro que a partir daquele momento, a sociedade seria comandada por homens. Por ticos, como disse no início do texto.
Lá se vão seis mil anos da institucionalização do patriarcado. Seis mil anos que nós, portadores de tico, ditamos as regras. E são regras rígidas. Em algumas sociedades, acreditem, as mulheres ainda hoje não podem sair à rua sem a companhia de um homem da família, ou do marido. Vivem hoje no mundo mais de duzentos milhões de mulheres que sofreram mutilação sexual, com a extirpação do clitóris ainda na infância, por razões religiosas (ONU). Até bem pouco tempo, há cerca de setenta anos, no Brasil, as mulheres precisavam da autorização de seus maridos para poderem viajar de avião. Até a Constituição de 1988 ainda era possível absolver um homem de ter assassinado sua esposa se fosse comprovado que ele havia sido motivado por forte emoção… na verdade, a tal “legítima defesa da honra” e o “crime passional” só desapareceram de nosso sistema jurídico com o código civil de 2002. Até hoje, em 2020, mulheres de algumas religiões evangélicas no Brasil são orientadas em “cursos de noivas” a tratarem seus maridos como “reis do lar”, recebendo-os com carinho e não importunando-os com problemas domésticos. E dando-lhe sexo como obrigação conjugal capaz de aliviá-lo de suas mazelas, irritações e estresse. Hoje, isso está acontecendo! Ainda!!! Sério!!!
É o poder do tico! Ainda hoje, se acredita que a força física é determinante para estabelecer relações de poder entre homens e mulheres. Esta deve ser uma última desculpa esfarrapada, para não dizer desesperada, porque está comprovado o fato de que intelectualmente não levamos vantagem alguma. Muito pelo contrário. Hoje os vestibulares e concursos públicos mais concorridos são dominados, em suas melhores classificações, por mulheres. E sabe por que não era assim antes? Por que elas eram menos inteligentes? Não. Porque até bem pouco tempo as meninas frequentavam a escola por menos tempo que os homens, porque para cuidar da casa, criar filhos e cumprir suas obrigações conjugais/sexuais não precisava estudar. Entre 1500 a 1827 a educação brasileira era permitida somente a homens. No Brasil, a educação feminina iniciou em colégios privados em 1867 e apenas em 1880 as mulheres puderam estudar em escolas públicas. Entende agora por que citar o Código de Hamurabi, com seis mil anos de “delay”, não é tão absurdo? Suas leis patriarcais, por mais absurdas que pareçam hoje, ainda faziam-se sentir na constituição brasileira até 140 anos. Tico, saca?
Levaram alguns milênios até que uma sociedade igualitária se tornasse uma escrota sociedade dominada por portadores de ticos. Dividimos o mundo, travamos guerras e genocídios. Fundamos religiões onde pais, filhos e espíritos santos punem e perdoam as mães e filhas. Se quiserem. Dominamos os mercados de capitais e a política. Deixamos o planeta doente. Tudo para garantir que os poderosos ticos continuassem de cabeça erguida, dominantes, olhando o mundo por cima, sem esmorecer.
Há menos de um século, começamos a nos dar conta da grande besteira que fizemos e as consequências disso. Em 1928, permitimos que as mulheres fizessem parte da vida política brasileira, votando e sendo votadas. Hoje não há mais amparo legal para qualquer limitação com relação à participação de mulheres em qualquer área na sociedade. Então pergunto aqueles que são contra os movimentos feministas: Acabou o patriarcado? Não há mais paternalismo? As meninas podem deixar os pobres e injustiçados ticos em paz novamente?
Vocês acham que seis mil anos de domínio masculino institucionalizado e reconhecido como “normal” seria abandonado porque há menos de um século as mulheres foram reconhecidas como seres iguais a nós em direitos? Claro que não! O machismo patriarcal está incrustado em nosso DNA. Ainda achamos absurdo que uma menina faça as mesmas coisas pelas quais torcemos para que nossos pequenos varões façam com abundância. E ainda contamos suas proezas para nossos amigos, para afirmar que o tico continua hereditariamente firme. Ainda acreditamos que a forma com que uma mulher se veste, dança, anda ou se porta socialmente é justificativa para que seja abusada, afinal de contas, “ela estava provocando” ou “está pedindo para levar, depois não quer”. Projetamos filhos jogadores de futebol e torcemos que nossas filhas se casem com “homens de bem”. E achamos muito estranho aquele filho do vizinho que não gosta de jogar bola, que fala com um ritmo diferente e que não chama de gostosa ou olha para a bunda da garota que passa. Um verdadeiro atentado contra a honra de quem? Do tico, ora, bolas!
E nesse sentido, não aceitamos que um homem ou uma mulher cometa a “traição de gênero”. Porque é inconcebível que um homem “renegue o tico”. E mulher, para ser mulher de verdade, tem que receber as bênçãos de um tico, ser fiel e temente a ele, até que a morte os separe. Amém! Qualquer coisa que fuja desta ordem aceita como natural, é no máximo tolerada, como algo passageiro, como a exceção que confirma a regra. Como modinha, diriam alguns. Como mimimi, diriam outros. A regra, mesmo não estando mais explícita em lei, ainda é a que diz que “o homem, o cabeça da esposa” (Coríntios 11:3-10) ou “porque o marido é o cabeça da esposa” (Efésios 5:23) ou ainda “Não se deite com um homem como quem se deita com uma mulher; é repugnante” (Levítico 18:22). Se está na Bíblia e na internet, então deve ser verdade. Aí, então, tudo aquilo que ameaça o histórico e controlador poder do tico, constitui ameaça: a feminista, o gay, o transexual, o assexuado… porque estas pessoas não estão cumprindo direito o dever e a função do tico, que não é outro, senão permanecer à frente, apontando a direção correta, como uma arma. Por isso mulheres como Marielle Franco ou homens como Tamy Miranda assustam tanto os partidários do tico. Eles não cumpriram as regras naturais.
Não adianta negar. Vivemos sim em uma sociedade patriarcal machista, paternalista e homofóbica. Os assomos de resistência a esta realidade são embriões, historicamente falando. Mas estão sendo gerados no ventre de mulheres fortes, que, a cada dia, despertam para a importância de romper com paternalismo. E aí, quando estas crianças nascerem, teremos um novo mundo. Ou talvez não tão novo, mas um mundo que, novamente, será habitado por pessoas que não definirão mais relações de poder medidas pela anatomia, mas pela capacidade de fazer o melhor para a humanidade. Este momento não só marcará a queda do tico, como o colocará em seu devido lugar.
(Foto: Acervo pessoal)
Leandro de Araújo, acadêmico de Letras Língua Portuguesa da UNIPAMPA, Polo de Esteio/UAB. Atuo há vinte anos como profissional de Tecnologias Educacionais. Apaixonado por escrever, sou o autor do blog https://blogdoleandroaraujo.blogspot.com/ e tenho um livro publicado pela Amazon chamado “A menina que podia voar e outros contos”. Sou um dos responsáveis pelo Projeto Aquecimento Cênico, que há 14 anos trabalha expressividade corporal e facial, inteligência emocional e relações interpessoais com equipes.