Ano 09 nº 106/2021 – Nós

Por Ana Paula Medeiros

image1

Imagem: Acervo pessoal.

Quando criança sonhamos em viver grandes aventuras, mas o que eu nunca imaginei é que elas poderiam ser tão grandes. Para começar essa história, preciso falar sobre uma menina, alguém especial. Ela era chata, gritona e ouvia música num volume tão alto, que a rua inteira conseguia ouvir aquela música, e a sua voz grave. 

Ela era brava e morava em frente à minha casa e nós havíamos brincado algumas vezes antes, mas agora, já éramos quase adolescentes e não nos falávamos muito. 

Como éramos vizinhas e participávamos do mesmo círculo de amizades, começamos a passar mais tempo juntas e foi assim que nasceu uma linda amizade. Como eu tinha um irmão mais velho, o melhor amigo dele se tornou o meu melhor amigo e dela também. Outras pessoas vinham e iam, mas nós continuávamos ali.

Aprontávamos muito! Nossas mães eram amigas e confiavam muito em nós, e poderiam confiar, pois, a única coisa que fazíamos era ser feliz! Inventávamos moda todos os dias, colocávamos uma extensão de luz na rua e levávamos o rádio para rua, entrávamos a madrugada ouvindo música e bebendo vinho. Aos sábados quando estava calor, íamos para o Rio dos Sinos, que ficava após os trilhos do trem de cargas que passava por lá. 

Em uma dessas idas para o Rio, resolvemos voltar pelos trilhos do trem e, na curva, demos de cara com o trem. Meu irmão e nosso amigo voltaram para trás, e eu com medo, sem saber o que fazer, fui de encontro. 

Ela sem nem pensar, foi junto. Meu irmão gritava correndo para trás e o maquinista na frente, buzinava sem parar. Foi horrível, até que pulamos em uma saída. Quando caímos, ficamos olhando o trem com uma carga de madeira passar por nós, enquanto o meu irmão gritava sem parar. 

E não paramos por ali! Um dia, a convite de um vizinho, resolvemos ir acampar, mas, depois de tudo, só poderíamos sair se o tio dela fosse junto. Nossas mães confiavam muito nele. Era um rapaz mais velho, solteiro que nos “cuidava”, então resolvemos convidá-lo e ele topou. 

Arrumamos uma barraca emprestada, o dinheiro da passagem e mantimento nas mochilas. Não era muito longe, fomos de ônibus, e o nosso vizinho e o meu irmão foram de motocicleta. 

Chegando lá, o lugar era horrível, cheio de mosquito e não havíamos levado repelente. Isso foi só o começo do nosso desespero, ninguém conseguia montar a barraca, foi uma luta e quando terminamos notamos um detalhe, havíamos esquecido os colchões e as roupas de cama. 

Como se não bastasse, os banheiros eram sujos, os chuveiros gelados e não havia luz. Foi a pior noite de nossas vidas! Deitamos sobre as roupas que havíamos levado, o tio não parava de roncar, roncava muito alto e não conseguíamos dormir.

No dia seguinte o almoço seria a pesca, só que eles tentaram pegar um peixe e não conseguiram. Ficamos com frio, fome e de saco cheio, então o passeio que era para durar até domingo, durou até o sábado à tarde. E o doido do vizinho, queria que ficássemos mais. Aff!

Em outra ocasião, resolvemos ir para a praia passar uns dias na casa da minha avó. Convidamos um amigo que tinha carro, e lá fomos nós. Fomos virados e eu, com muito sono, quando chegamos, deitei na areia e dormi. Quando acordei, parecia um pimentão. 

Passei o tempo inteiro sem poder ir ao sol e nem no mar. Brigávamos o tempo inteiro, um soldado nos abandonou e foi embora. Iríamos ir embora no domingo, então, sábado à noite fomos para o centro curtir o carnaval. Enchemos o tanque do carro, guardamos um dinheiro para o pedágio e bebemos o restante, nos divertimos muito! 

Chegando a hora de ir embora, sentimos um forte cheiro de gasolina, a bomba havia furado e a gasolina estava vazando, fomos logo embora para tentarmos chegar em casa. Chegando no pedágio, o valor era dois reais além do que tínhamos.

Começamos a brigar, e um culpava o outro. O meu irmão nos mandou pedir esmola no pedágio, só que por eu estar toda queimada, estava com uma mini saia larga e uma mini blusa. Nunca passei tanta vergonha! Deveria passar mil ideias, na cabeça das pessoas. 

Eram só dois reais, mas nos esnobavam, cada carro mais lindo que o outro e ninguém acreditava na nossa história, foi então que enxergamos um carro bem humilde com um casal dentro, eles nos ouviram e nos deram o dinheiro, auxiliando a não usarmos drogas. 

Enfim, saímos de lá, rezando para chegarmos em casa, mas não chegamos. O carro parou em um posto de gasolina, mas não tínhamos dinheiro para nada, nem crédito no celular nós tínhamos. 

E lá fomos nós, pedir dinheiro novamente. Imploramos no posto, pedimos para algumas pessoas, mas não deu. Então fomos a um orelhão e ligamos a cobrar para casa, para que nossas mães mandassem alguém lá. O soldado que havia nos abandonado, foi nos salvar. Nem lembro quanto tempo ficamos de castigo.

Adorávamos ir para a escola, mas não era apenas para estudar, tínhamos muitos amigos. A escola ficava a cinco minutos da nossa casa, mas saíamos trinta minutos mais cedo, para ficar de conversa com um e outro. A escola ficava na rótula, perto de casa, rótula na qual, adorávamos fazer o retorno.

Certo dia, nos vestimos como mendigas, colocamos roupas sobre roupas e fomos dar uma volta. Sem contar que eu sempre andava com chiquinhas no cabelo e com uma boneca na mão, nos divertíamos muito. 

Em uma dessas voltas, dois homens de bicicleta tentaram nos agarrar. Fizemos um fiasco, batemos neles, apanharam até de boneca. Vivíamos cada dia como se fosse último, éramos felizes. 

Vez que outra, frequentávamos algumas festas, só com o dinheiro do van. Havia um vizinho que alugava uma van e levava a galera para a festa, nós íamos e voltávamos na primeira viagem e tomávamos água na pia do banheiro. Vários outros amigos nos acompanhavam, mas a fase dessas festas acabou.

Perto de casa, abriu um bar com música ao vivo para pessoas mais velhas, agora a vibe era outra. Então, levávamos as nossas mães e curtíamos com elas. Chamávamos o bar de balança teta, logo à frente havia outro para pessoas mais jovens, ficávamos indo e voltando de um para o outro. 

Hoje os nossos sonhos são outros e mesmo depois de tudo, nós ainda somos, nós. 

Ana Paula Medeiros é estudante do oitavo semestre do curso de letras, na Universidade Federal do Pampa.

Deixe seu comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Junipampa